terça-feira, 2 de outubro de 2012

“Filho querido de meu coração...”

 Como vimos em nosso último post, circunstâncias particularmente favoráveis à causa católica fizeram com que Dr. Plinio se decidisse por uma viagem à Europa, em abril de 1950, poucos dias antes do aniversário de sua mãe. A fim de amenizar o golpe que a longa separação infligiria ao extremoso coração materno, idealizou alguns estratagemas para que Da. Lucilia não percebesse de imediato que ele, em breve, estaria do outro lado do imenso oceano...

Não era fácil, porém, iludir tão ardoroso coração, todo feito de carinho materno. Uma secreta desconfiança lhe fazia sentir ser outro o verdadeiro destino de seu filho. E por mais que lhe assegurassem o contrário, ela não se convencia.
Dr. João Paulo, em carta escrita a Dr. Plinio no dia 20, relata o ocorrido em casa após a partida deste:
Lucilia, sempre desconfiada [de estar ocorrendo algo inusitado], instintivamente tornou-se ainda mais apreensiva do que estava (...); no domingo pediu ligação telefônica para o Rio, e não a obtendo, me fez pedi-la para segunda-feira.
No dia 17, segunda-feira, Dr. Plinio desembarcou no aeroporto de Barajas ,em Madri. Uma de suas primeiras providências foi enviar um telegrama à sua tia Zili, irmã de Dª Lucilia, informando-a de que fizera boa viagem. Não o mandou diretamente para sua casa, pois sua mãe, ao vê-lo chegar, logo se daria conta do acontecido, podendo sofrer um certo choque. Por isso, quis que a notícia lhe fosse dada por sua tia, e suavizada com o bálsamo da carta por ele deixada. Assim Dr. João Paulo, após narrar a chegada do telegrama, acrescenta:
[Nestor e] Zili vieram em casa e tudo ficou em pratos limpos. Muito choro, muita reza e tudo ficou regularizado satisfatoriamente, sobretudo após a leitura de uma, a primeira, das cartas a lhe serem entregues. A segunda carta, ela a receberá no dia 22 com as flores que pedirei a Zili que escolha, como você deixou pedido.
“Meu coração procura o de Plinio...”
Uma vez refeita do abalo dos primeiros momentos, Dª Lucilia logo tomou a pluma para escrever a primeira das muitas cartas que as enormes saudades a levariam a enviar ao filho querido. Para nossa alegria, foi providencialmente encontrada quase intacta a correspondência trocada entre ela e Dr. Plinio nesse período, permitindo-nos penetrar com discrição e respeito no suave e acolhedor recinto daquele coração materno.
De forma comovedora e com palavras cheias de unção, conta ela, na primeira missiva, como afinal seus pressentimentos não a haviam enganado.
Filho querido de meu coração!
Acabo de receber tua carta e telegrama. Louvado seja Deus, chegaste são e salvo. Não era em vão que eu dizia a teu pai, “meu coração procura o de Plinio e não o acha no Rio, e sim pelos ares!” Enfim, alegro-me de tudo o que Deus e a Virgem Santíssima fazem por ti, que és o melhor dos filhos, e que abençôo de todo o meu coração, de todas as forças de minh’alma. Muitos abraços, beijos e saudades, de tua velha “manguinha”.
Numa carta por ela escrita pouco mais tarde, sobressai a gratidão para com o filho, pelo fato de lhe ter ocultado o verdadeiro destino da viagem, poupando-lhe, desse modo, inúmeras aflições. Em linhas penetradas de doçura, reflexo de sua nobreza de alma, assim se exprime:
Plinio querido!
Com tanta cousa para escrever-te, e que me saía aos borbotões, ia me escapando de dizer-te, o que me afligiria muito, o quanto apreciei a delicadeza de tua mentira generosa, que não engoli totalmente, pois, desconfiada e aflita, repetia sempre, – qual, vocês não me enganam, meu filho está já em viagem,... meu coração não encontra o seu no Rio, e sim voando, nos ares! – Teu pai, e todos enfim, procuravam iludir-me a ponto de sossegar-me e pôr-me de novo a esperar-te, mas só por umas horas. – Como tudo o que fazes, foi muito bom assim, e tudo bem feito, e reconhecida agradeço-te.
Vê se tens bem cuidado com tua saúde. Nada de imprudências, e, recomendação para todos. Mais muitos beijos, bênçãos e abraços de tua mãe extremosa.
Lucilia.
Quando vão a Fátima? Reze por nós, especialmente por tua afilhada e sobrinha.
Afetuosas e filiais recomendações
Nesse dia, como relatara Dr. João Paulo, Dª Lucilia chorou muito e rezou ainda mais. Embora seu doce consolo fosse sobretudo o Sagrado Coração de Jesus, não pouco a deve ter confortado a leitura e releitura da carta deixada por seu filho:
Manguinha querida do coração,
À hora em que a senhora ler esta carta, já estarei nas Espanhas. Não preciso dizer- lhe com que saudades parti...... bem maiores, desconfio eu, do que aquelas com que a senhora ficou. (...)
Agora, meu amor, algumas recomendações:
1- HORÁRIO: aproveite este tempo para levar uma verdadeira vida de sanatório, almoçando e jantando cedo, DEITANDO-SE CEDO, tomando MUITA água Prata, etc. Será um período de repouso ao cabo do qual encontrarei meu pito de ferro mais forte do que nunca, se Deus quiser;
2- ORAÇÕES: razoáveis, pois que nada do que não é razoável pode agradar a Deus. Assim, conta, peso e medida até no rezar. Nada de orações até horas tantas. Reze muito, mas reze de dia;
3- Não economize automóvel, especialmente quando se tratar de ir ao Coração de Jesus. Vá lá com toda a frequência, e demore-se à vontade.
Creio, Anjo querido, que minha volta será na última semana de Junho, pois tenho conferências e compromissos aqui. Porém não posso dizer em que dia chegarei. Escrever-lhe-ei assiduamente. Não lhe dou endereço, pois não sei a que hotel vou. Nem sei exatamente que número de dias deverei ficar em cada país.
Não preciso dizer-lhe porque fui obrigado a mais este sacrifício: estar fora no dia 22. É a necessidade de voltar a tempo. Não lhe poderei telefonar no dia 22, mas certamente telegrafarei.
Querida do coração, confie muito em Nossa Senhora, que irei venerar nos seus principais Santuários: Fátima, Lourdes, e a Rue du Bac, onde Ela apareceu a Santa Catarina Labouré, sob a invocação de Nossa Senhora das Graças, ensinando a devoção da Medalha Milagrosa.
Juízo, amor. Penso que não é necessário recomendar que se lembre de vez em quando de mim. Com milhões de abraços e beijos, e todo o afeto e respeito deste mundo, pede sua bênção o filho, o taludíssimo e esporudíssimo “pimbinche”.
Plinio
Uma feijoada de 1ª classe para a volta, com pinga, feijão preto e farinha torrada. Veja as cortinas do hall e sala de jantar e as molas de minha cama. Tome muita água Prata e empanturre papai de coco e cocadas.
P.
Crescente benquerença entre mãe e filho
Três dias depois da partida de Dr. Plinio — para Dª Lucilia, três longos dias — sem aguardar mais notícias dele e movida pelas saudades que já lhe faziam sofrer o coração, ela retoma a pena. Ainda uma vez agradece a seu filho todos os cuidados em lhe ocultar a travessia oceânica. De nenhum modo susceptibilizada por isto, nem sequer sentindo-se ferida em seu amor próprio ao saberse vítima de um inocente jogo, Dª Lucilia não cessa de manifestar seu carinho e exclusivo desejo de que ele se beneficiasse da viagem. Além disso, não deixa de se preocupar, de aconselhar e rezar.
São Paulo – 19-4-1950.
Filho querido de meu coração! Com o coração transbordante de saudades, venho dizer-te a enorme falta que me fazes, pois parece-me ver-te entrar a todas as horas, e ver-te em todos os lugares, e o meu espirito voa – sem avião– em busca do teu! Contudo, filho querido, procuro ser calma, e agradecer a Deus e à Virgem Santíssima a graça de poder ver-te realizar este sonho tão necessário e útil à tua vida, e a teus futuros trabalhos, e também a felicidade de poderes ver, talvez ouvir e falar mesmo ao nosso Papa! – E, tudo isso, em companhia de tão bons companheiros!
Agradeço-te imenso, tudo o que, como excelente filho, fizeste para evitar-me a angústia da travessia. Mandei acender uma vela a Nª Srª das Graças, e fiz muitas orações pela tua feliz chegada.
Conta-me tudo o que têm feito e o que de bonito por aí já viram: Granada, Alhambra... o túmulo de Dom Felipe,.... históricos palácios, conventos... e o que mais? – Já comeram muitos figos de capa-rota e cerejas? – Penso ser agora a época. – Quando seguem para Paris para respirarem o já célebre “doux air de France”¹?
Muito cansada e com sono, termino esta, enviando-te todas as minhas bênçãos, e te pedindo para que veles bem pela tua preciosa saúde. Mais uma vez, que Deus te abençoe, te faça muito feliz e envio-te saudosíssima, muitos beijos e abraços.
— De tua mamãe extremosa,
Lucilia
À medida que o tempo avançava, crescia o amor recíproco entre mãe e filho. Erraria quem julgasse ser tal benquerença exclusivamente natural. Dotados ambos pela Providência — cada um a seu modo — de grande senso psicológico, discerniam, um no outro, os respectivos progressos nas vias do bem e, por essa razão, sua benquerença recíproca crescia sempre mais. Tratava-se de um amor sobrenatural em sua essência, como podemos notar nas missivas reproduzidas acima, e ao longo de toda a correspondência trocada entre eles.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

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