Salões da casa de Dona Lucilia: o bom gosto e a
categoria da
decoração refletem o requinte de espírito daquela que a orientou
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Vistos assim por Dª Lucilia, os fatos do acontecer quotidiano faziam da vida tranquila e miúda do lar uma espécie de despretensioso observatório do alto do qual se podiam ver as estrelas.
Sua atitude de alma nos traz à lembrança um singelo exemplo, que Nosso Senhor tornou sublime ao incluí-lo em suas belas e terríveis palavras sobre a infidelidade de Jerusalém: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes eu quis juntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintainhos debaixo das asas, e tu não quiseste?” (Lc 13, 34-35).
Nosso Senhor, dando esse exemplo para exprobrar a infidelidade da Cidade Santa, teve entre outros intuitos o de mostrar que algo tão simples como a maternalidade de uma galinha em relação a seus pintainhos, deve servir aos homens de elemento para meditação sobre a grandeza do próprio Deus.
Elevação de alma nos episódios diários
Dona Lucilia no início da década de 1960
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Olga servia dedicadamente Dª Lucilia havia já muitos anos. Trouxera consigo sua filha Carlota, em cuja educação se empenhava com todo o esmero. Na época em que a menina fazia seus estudos secundários, sua mãe matriculou-a num curso de datilografia, e era com grande alegria que seguia de perto, passo a passo, seus progressos.
Dona Lucilia observava comprazida o desvelo de Olga por Carlota. E, na primeira oportunidade, contava a Dr. Plinio alguns episódios que mais lhe haviam tocado o coração materno.
Um deles era o retorno diário de Carlota a casa, vinda do colégio. Dona Lucilia, pela porta da sala de jantar entreaberta, acompanhava discretamente o que se passava na copa, onde a doméstica trabalhava. À medida que a hora do regresso de Carlota se aproximava, Olga ia ficando inquieta, até mesmo um pouco agitada. Olhava repetidas vezes para o relógio de parede, parecendo querer apressar os ponteiros do mostrador, que ao ritmo do tic-tac prosseguiam seu lento caminhar, insensíveis à expectativa materna. Se ocorria algum atraso, ela passava para um estado de ligeiro nervosismo, indo até o terraço para ver se dali descortinava a menina na rua.
Quando finalmente Carlota despontava ao longe, as apreensões de Olga se desvaneciam como fumo. Ela corria alegremente até a entrada do prédio para esperar a chegada da filha; ambas se beijavam e se acariciavam efusivamente, como se Carlota estivesse voltando de uma longa viagem.
Depois a mãe recuava um pouco para melhor ver a filha e certificar-se de que ela estava perfeitamente bem. A menina, ao contentamento de ver a mãe, somava o comprazimento por se sentir objeto de tanta atenção. Quase sem dirigirem palavra uma à outra, iam para o quarto de Olga, no fundo do apartamento, onde esta ouvia o relato de como correra o dia, do que a filha aprendera de novo... Era a hora das confidências.
Dona Lucilia se encantava vendo tanto afeto e fazia o possível para que nada perturbasse esses momentos de convívio entre mãe e filha, chegando a atender, ela própria, ao telefone e à porta. Pouco depois, Olga voltava ao serviço e Carlota se entregava às suas obrigações escolares.
Detalhe do “Salão Azul”, com o arco que abre para o
“Salão Rosa”.
Na parede da direita vê-se a gravura da Duquesa de Nemours;
abaixo dela, o fino busto de mármore
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À noite, muitas vezes Dr. Plinio iniciava a “prosinha” perguntando como fora a chegada de Carlota. Se havia algum detalhe a assinalar, Dª Lucilia o contava. Um dia, por exemplo, Carlota comprou um gorro, de modelo certamente sugerido pela própria mãe.
Dona Lucilia descreveu todo o encantamento de Olga ao ver chegar a filha tão contente com seu novo adorno.
Pequenas discrepâncias sobre decoração
Até o avant- guerre1, o progresso da cultura, o gosto do ornato, o requinte alcançado nos mais variados aspectos da existência, davam à vida uma elevação e um atrativo que os avanços técnicos e materiais da humanidade, nos períodos seguintes, não puderam substituir nem superar.
Tendo Dª Lucilia assimilado o que havia de bom nos usos e costumes daqueles remotos tempos, conservou-os durante toda a vida. Ao considerar, por exemplo, qual deveria ser a decoração ideal de sua própria casa, seguia os critérios de bom gosto dos idos anos de sua mocidade. Por isso, embora seu apartamento estivesse tão apropriado a seu modo de ser, em alguns detalhes ela certamente o teria ordenado de modo um pouco diverso.
Dr. Plinio, sempre desejoso de conhecer as preferências de sua mãe para melhor discernir e amar sua bela alma, estando certo dia a conversar com ela no “Salão Azul”, amenamente perguntou:
— Mamãe, tomando em consideração o gosto de seu tempo, a senhora não estranha nada nesta sala?
— Sim, estranho!
— Mas, o que estranha a senhora?
— Filhão, este arco (que abre o “Salão Azul” para a “Saleta Cor-deRosa”), ficaria mais bonito se tivesse, pendentes de cada lado, uns lindos tecidos antigos, franzidos, à maneira de cortinas.
Para o modo de ver de Dª Lucilia, não era compreensível que aquele arco estivesse desprovido de algum elemento decorativo. As cortinas, além de criar uma divisão psicológica entre as duas salas, dariam mais aconchego ao ambiente e quebrariam a frieza do arco.
Seu filho então afetuosamente lhe disse:
— Meu bem, a senhora não nota que isto tornaria muito fechadinha esta sala?
De fato, Dª Rosée e Dr. Plinio, cujo modo de ser era mais inclinado a ressaltar as grandes perspectivas visuais, haviam preferido sacrificar o imaginado adorno a fim de dar maior amplitude ao salão. Porém, não era assim que Dª Lucilia via o assunto. Suavemente, mas com determinação, ela concluiu:
— De qualquer maneira é uma coisa que não se poderia dispensar!...
Se de um lado Dª Lucilia mostrava essa preferência pelo ornato, por outro sabia encontrar o equilíbrio no gosto pela simplicidade. Viajando pela Europa, Dr. Plinio decidiu comprar uma bela gravura que representa a Duquesa de Nemours. Ao retornar, mandou colocá-la no “Salão Azul”. Para Dª Lucilia, porém, esse quadro, apesar de muito bonito, não fazia falta, pois ali mesmo já havia um fino busto de mármore. Quando apareceu uma oportunidade, durante uma de suas tão apreciadas prosinhas, externou serenamente a Dr. Plinio o seu modo de pensar. Ele respondeu:
— Meu bem, indispensável o quadro não é, mas melhora o arranjo da sala.
— Mas, para quê? Nós vivemos tão bem sem ele...
Manifestando assim, de modo suave, sua opinião, insinuava discretamente sua perplexidade. No entanto, deixava Dr. Plinio à vontade para tudo dispor como achasse mais conveniente. Em todo o caso, por sua grande consonância de alma com seu filho, ainda que não compreendesse as razões de algumas atitudes dele, considerava-as sempre boas. Como de costume, ela estava pronta a renunciar às suas próprias preferências em favor das alheias.
Equilíbrio entre a placidez e a presteza
A facilidade com que Dª Lucilia se adaptava à vontade dos outros tinha como causa sua grandeza de alma. Nada havia que lhe pudesse abalar o ordenado equilíbrio interior.
Aqueles que mais proximamente conviveram com Dª Lucilia nunca a viram ter um só movimento de impaciência, por menor que fosse. Se a vida lhe trazia algum grave revés, como foi o caso do incêndio de um de seus imóveis, ou da doença que a atingira com dores agudas, a confiança na Providência lhe dava o consolo para manter a paz interior sem se afligir com o futuro. E, até no governo da casa, jamais permitia que os diminutos — mas não raro absorventes — problemas domésticos lhe turbassem o espírito, mantendo-se sempre calma como a superfície cristalina de um lago de montanha.
Seu filho, que a acompanhou de perto até o fim de seus dias, pôde afirmar sem receio: “Em 60 anos de convívio com mamãe, nunca a vi ter um capricho”.
Quanta renúncia de si mesma, quanto domínio da vontade não lhe foi necessário, durante sua longa existência, para que alguém pudesse fazer dela esse comentário tão simples, mas testemunho de tão grande equilíbrio de alma!
Alegrias e tristezas
A par das não pequenas cruzes que Dª Lucilia pacientemente carregava, duas grandes alegrias a acompanharam até o fim de seus dias.
A primeira delas provinha da Fé, que lhe dava a segurança de estar no bom caminho — o da Igreja Católica Apostólica Romana — e ao mesmo tempo a esperança inquebrantável da salvação eterna. Essa confiança de, após as tristezas presentes, vir a alcançar o Céu, pelos infinitos méritos do Salvador, era a alegria fundamental que iluminava como um luar sua existência.
A segunda era a vida familiar, e no seio desta, de modo particular, o fato de ter um filho — um “filhão” — ao qual ela queria muitíssimo bem e que com indizível afeto lhe retribuía. Foi esta uma das causas mais patentes de sua longevidade, surpreendente, apesar da frágil saúde e dos sofrimentos que suportou durante toda a vida.
Tanto as grandes alegrias e tristezas quanto as menores, Dª Lucilia, seguindo o insuperável e sublime exemplo da Santíssima Virgem, conservava-as como preciosa lembrança, meditando-as em seu coração. Por sua seriedade de alma, considerava todo o alcance dos fatos, e ia passo a passo fazendo da vida um severo exame, pois para ela tudo tinha uma dimensão grandiosa. Com essa profundidade de espírito encarava ela o falecimento de seus familiares, como o de seu genro Antônio de Castro Magalhães, ocorrido após uma fria madrugada de inverno.
Na região onde se situava sua fazenda, no norte do Paraná, a baixa temperatura fazia prever uma forte geada que comprometeria toda a plantação. Antônio, diante de perspectiva tão ruinosa, passou a noite inteira a cavalo, orientando os empregados na insana tarefa de espalhar pelo cafezal certas bombas de fumaça, as quais, segundo os entendidos, preservariam do desastre a imensa cultura cafeeira. Com o amanhecer passou definitivamente o perigo de geada e Antônio recolheu-se à sua residência para descansar. Algumas horas mais tarde, aparentando inteira normalidade, dirigiu-se à casa do capataz para ordenar algumas providências. Mas o esforço daquela afanosa e gélida noite fora-lhe fatal: ao cruzar o limiar da porta, caiu fulminado por um ataque cardíaco. Era 6 de agosto de 1955.
A inesperada notícia provocou profunda consternação na família. Imediatamente Dr. Plinio viajou para Cornélio Procópio a fim de cuidar da transladação do cadáver.
Nessa ocasião, Dª Lucilia, apesar da tão avançada idade, manteve um perfeito domínio de si, procurando ao mesmo tempo consolar sua filha e sua neta com doces palavras de esperança, para o que ela, como ninguém, sabia encontrar os termos mais adequados.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
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