segunda-feira, 17 de setembro de 2012

No pórtico da ancianidade

Em 22 de abril de 1946, Dª Lucilia completava 70 anos...
Na vida humana, 70 anos constituem um marco. Aí aparecem, como que cristalizadas, todas aquelas preferências e modos de ser que nortearam o desenrolar de uma existência. Naqueles que procuraram trilhar a via da virtude reluz então, como nunca — na fisionomia, nas palavras, nos gestos, nos atos, na ação de presença — a “soma das idades”: a inocência batismal, os sonhos da infância, as esperanças da adolescência, o vigor da juventude, a força e a estabilidade da idade madura, o magnífico reluzimento de uma velhice florida a que agora se acresceriam os reflexos de prata da ancianidade, tudo temperado pelos sofrimentos que ao longo da vida lhe lapidaram a alma, transformando-a num como que diamante aos olhos de Deus.
Nessa lapidação — é o caso de lembrar — não faltou nem mesmo aquele tipo de sofrimento que sua antiga situação nunca faria prever: as dificuldades financeiras, após a morte de Dª Gabriela. No entanto, se Dª Lucilia fosse uma pessoa bem-sucedida, talvez não alcançasse o patamar espiritual que atingiu. Por exemplo, se a família tivesse sido muito feliz nos negócios, e Dª Lucilia se encontrasse, portanto, na plenitude da fortuna, teria faltado algo em sua vida: o valor da posição que herdara de seus maiores, sustentada com grande categoria em meio às dificuldades.
De outro lado, requintara-se em Dª Lucilia aquela afetividade brasileira, sempre educada, distinta e nobre, qualquer que fosse a situação. Temperada por um certo ar de gravidade senhorial, próprio de dama paulista dos antigos tempos, que transparecia em todas as suas atitudes, mesmo quando andava dentro de casa, indo a uma sala, por exemplo, para apanhar uma costurinha. Este aspecto de sua personalidade formava um oposto harmônico com a meiguice, que em sua vida ocupava lugar preeminente.
Usava uma cadeira de balanço trazida dos Estados Unidos por um tio dela. Quando se levantava, preferia não ser ajudada. Fazia-o por si mesma, como um monumento. Andava com seu passo característico, em geral ágil e discreto, por vezes vagaroso e solene, e sumia nos aposentos dela...
Insigne piedade
Durante aqueles 70 anos nunca esmoreceu em Dª Lucilia o amor a Nossa Senhora, cuja onipotente intercessão junto ao Sagrado Coração de Jesus ela tão bem compreendia. Desde sua meninice, Maria Santíssima velava por ela, pois sua mãe, Dª Gabriela, lhe escolhera para madrinha a Virgem da Penha.
Desde aqueles tempos conservava em seu quarto, no mesmo oratório da imagem do Sagrado Coração de Jesus, outra menor, de Nossa Senhora das Graças. No lado esquerdo da cama, suspenso à parede, mais um oratório de madeira abriga a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Como era de esperar em se tratando de pessoa tão devota da Santíssima Virgem, tinha lugar de destaque em sua piedade — já na mais remota mocidade — a recitação do Santo Rosário. Sua devoção mariana reluzia sobretudo durante o mês de maio, ocasião em que floria algumas imagens de Nossa Senhora que havia na casa.
Dona Lucilia pertencia à Associação das Mães Cristãs e participou de alguns retiros — bem podemos imaginar com que recolhimento, seriedade e amor — promovidos pela entidade. Outro testemunho de suas constantes orações nos é dado pelos muitos devocionários que, com cuidado, guardava numa gaveta em seu quarto para tê-los à mão quando desejasse.
O avançar dos anos não lhe fizera diminuir o desejo de comparecer às solenidades religiosas, onde pudesse satisfazer os melhores anelos de sua insigne piedade, apesar do esforço que o peso de seus sofridos 70 anos lhe exigiam.
Numa carta escrita a Dr. Plinio, em 26 de junho de 1946, terminava dizendo:
Fui agora à noite à novena do Sagrado Coração de Jesus na Igreja de Santa Cecília, e desejo repetir amanhã, e, se Deus me ajudar, como todos os anos, irei à missa, comungarei, e acompanharei a procissão no dia vinte oito, depois de amanhã à tarde. Acompanhei também parte da de Corpus Christi, que esteve concorridíssima, e no largo da Sé, recebemos a bênção. Quando de volta, exausta, meti-me na cama até o dia seguinte.
Bem, muito querido, cansada e com sono, despeço-me, enviando-te com minhas mais afetuosas bênçãos, muitos beijos abraços e saudades.
De tua mamãe extremosa
 Lucilia
Quando Dª Lucilia lhe enviou esta missiva, Dr. Plinio se encontrava em São Sebastião, no litoral paulista, para tratar da execução testamentária de seu amigo José Gustavo, falecido pouco tempo antes.
Transcrito, com adaptações, da obra Dona Lucilia, de João S. Clá Dias

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