sábado, 15 de dezembro de 2012

Admirável equilíbrio de alma

Salões da casa de Dona Lucilia: o bom gosto e a categoria da 
decoração refletem o requinte de espírito daquela que a orientou
As cogitações de Dª Lucilia atingiam o ápice nos momentos em que ela se dirigia ao Sagrado Coração de Jesus. No restante do dia ela mantinha os olhos postos em elevadas considerações, e precisamente por isso podia descer com facilidade aos pequenos assuntos domésticos, sem se deixar por eles absorver.
Vistos assim por Dª Lucilia, os fatos do acontecer quotidiano faziam da vida tranquila e miúda do lar uma espécie de despretensioso observatório do alto do qual se podiam ver as estrelas.
Sua atitude de alma nos traz à lembrança um singelo exemplo, que Nosso Senhor tornou sublime ao incluí-lo em suas belas e terríveis palavras sobre a infidelidade de Jerusalém: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes eu quis juntar os teus filhos, como a galinha recolhe os seus pintainhos debaixo das asas, e tu não quiseste?” (Lc 13, 34-35).
Nosso Senhor, dando esse exemplo para exprobrar a infidelidade da Cidade Santa, teve entre outros intuitos o de mostrar que algo tão simples como a maternalidade de uma galinha em relação a seus pintainhos, deve servir aos homens de elemento para meditação sobre a grandeza do próprio Deus.
Elevação de alma nos episódios diários
Dona Lucilia no início da década de 1960
Nas sendas do modelo divino, Dª Lucilia elevava a mente a altos pensamentos, impregnados de sobrenatural, a partir dos pequenos fatos do dia-a-dia. Exemplo disso era o encanto dela pelas manifestações de amor materno que sua empregada Olga tinha pela filha.
Olga servia dedicadamente Dª Lucilia havia já muitos anos. Trouxera consigo sua filha Carlota, em cuja educação se empenhava com todo o esmero. Na época em que a menina fazia seus estudos secundários, sua mãe matriculou-a num curso de datilografia, e era com grande alegria que seguia de perto, passo a passo, seus progressos.
Dona Lucilia observava comprazida o desvelo de Olga por Carlota. E, na primeira oportunidade, contava a Dr. Plinio alguns episódios que mais lhe haviam tocado o coração materno.
Um deles era o retorno diário de Carlota a casa, vinda do colégio. Dona Lucilia, pela porta da sala de jantar entreaberta, acompanhava discretamente o que se passava na copa, onde a doméstica trabalhava. À medida que a hora do regresso de Carlota se aproximava, Olga ia ficando inquieta, até mesmo um pouco agitada. Olhava repetidas vezes para o relógio de parede, parecendo querer apressar os ponteiros do mostrador, que ao ritmo do tic-tac prosseguiam seu lento caminhar, insensíveis à expectativa materna. Se ocorria algum atraso, ela passava para um estado de ligeiro nervosismo, indo até o terraço para ver se dali descortinava a menina na rua.
Quando finalmente Carlota despontava ao longe, as apreensões de Olga se desvaneciam como fumo. Ela corria alegremente até a entrada do prédio para esperar a chegada da filha; ambas se beijavam e se acariciavam efusivamente, como se Carlota estivesse voltando de uma longa viagem.
Depois a mãe recuava um pouco para melhor ver a filha e certificar-se de que ela estava perfeitamente bem. A menina, ao contentamento de ver a mãe, somava o comprazimento por se sentir objeto de tanta atenção. Quase sem dirigirem palavra uma à outra, iam para o quarto de Olga, no fundo do apartamento, onde esta ouvia o relato de como correra o dia, do que a filha aprendera de novo... Era a hora das confidências.
Dona Lucilia se encantava vendo tanto afeto e fazia o possível para que nada perturbasse esses momentos de convívio entre mãe e filha, chegando a atender, ela própria, ao telefone e à porta. Pouco depois, Olga voltava ao serviço e Carlota se entregava às suas obrigações escolares.
Detalhe do “Salão Azul”, com o arco que abre para o “Salão Rosa”. 
Na parede da direita vê-se a gravura da Duquesa de Nemours; 
abaixo dela, o fino busto de mármore
Dona Lucilia nunca tomava a iniciativa de interferir no modo de Olga conduzir a educação da filha, mas sempre que a empregada lhe pedia opinião sobre algum ponto, jamais recusava um bom conselho.
À noite, muitas vezes Dr. Plinio iniciava a “prosinha” perguntando como fora a chegada de Carlota. Se havia algum detalhe a assinalar, Dª Lucilia o contava. Um dia, por exemplo, Carlota comprou um gorro, de modelo certamente sugerido pela própria mãe.
Dona Lucilia descreveu todo o encantamento de Olga ao ver chegar a filha tão contente com seu novo adorno.
Pequenas discrepâncias sobre decoração
Até o avant- guerre1, o progresso da cultura, o gosto do ornato, o requinte alcançado nos mais variados aspectos da existência, davam à vida uma elevação e um atrativo que os avanços técnicos e materiais da humanidade, nos períodos seguintes, não puderam substituir nem superar.
Tendo Dª Lucilia assimilado o que havia de bom nos usos e costumes daqueles remotos tempos, conservou-os durante toda a vida. Ao considerar, por exemplo, qual deveria ser a decoração ideal de sua própria casa, seguia os critérios de bom gosto dos idos anos de sua mocidade. Por isso, embora seu apartamento estivesse tão apropriado a seu modo de ser, em alguns detalhes ela certamente o teria ordenado de modo um pouco diverso.
Dr. Plinio, sempre desejoso de conhecer as preferências de sua mãe para melhor discernir e amar sua bela alma, estando certo dia a conversar com ela no “Salão Azul”, amenamente perguntou:
 — Mamãe, tomando em consideração o gosto de seu tempo, a senhora não estranha nada nesta sala?
— Sim, estranho!
— Mas, o que estranha a senhora?
— Filhão, este arco (que abre o “Salão Azul” para a “Saleta Cor-deRosa”), ficaria mais bonito se tivesse, pendentes de cada lado, uns lindos tecidos antigos, franzidos, à maneira de cortinas.
Para o modo de ver de Dª Lucilia, não era compreensível que aquele arco estivesse desprovido de algum elemento decorativo. As cortinas, além de criar uma divisão psicológica entre as duas salas, dariam mais aconchego ao ambiente e quebrariam a frieza do arco.
Seu filho então afetuosamente lhe disse:
— Meu bem, a senhora não nota que isto tornaria muito fechadinha esta sala?
De fato, Dª Rosée e Dr. Plinio, cujo modo de ser era mais inclinado a ressaltar as grandes perspectivas visuais, haviam preferido sacrificar o imaginado adorno a fim de dar maior amplitude ao salão. Porém, não era assim que Dª Lucilia via o assunto. Suavemente, mas com determinação, ela concluiu:
— De qualquer maneira é uma coisa que não se poderia dispensar!...
Se de um lado Dª Lucilia mostrava essa preferência pelo ornato, por outro sabia encontrar o equilíbrio no gosto pela simplicidade. Viajando pela Europa, Dr. Plinio decidiu comprar uma bela gravura que representa a Duquesa de Nemours. Ao retornar, mandou colocá-la no “Salão Azul”. Para Dª Lucilia, porém, esse quadro, apesar de muito bonito, não fazia falta, pois ali mesmo já havia um fino busto de mármore. Quando apareceu uma oportunidade, durante uma de suas tão apreciadas prosinhas, externou serenamente a Dr. Plinio o seu modo de pensar. Ele respondeu:
— Meu bem, indispensável o quadro não é, mas melhora o arranjo da sala.
— Mas, para quê? Nós vivemos tão bem sem ele...
Manifestando assim, de modo suave, sua opinião, insinuava discretamente sua perplexidade. No entanto, deixava Dr. Plinio à vontade para tudo dispor como achasse mais conveniente. Em todo o caso, por sua grande consonância de alma com seu filho, ainda que não compreendesse as razões de algumas atitudes dele, considerava-as sempre boas. Como de costume, ela estava pronta a renunciar às suas próprias preferências em favor das alheias.
Equilíbrio entre a placidez e a presteza
A facilidade com que Dª Lucilia se adaptava à vontade dos outros tinha como causa sua grandeza de alma. Nada havia que lhe pudesse abalar o ordenado equilíbrio interior.
Aqueles que mais proximamente conviveram com Dª Lucilia nunca a viram ter um só movimento de impaciência, por menor que fosse. Se a vida lhe trazia algum grave revés, como foi o caso do incêndio de um de seus imóveis, ou da doença que a atingira com dores agudas, a confiança na Providência lhe dava o consolo para manter a paz interior sem se afligir com o futuro. E, até no governo da casa, jamais permitia que os diminutos — mas não raro absorventes — problemas domésticos lhe turbassem o espírito, mantendo-se sempre calma como a superfície cristalina de um lago de montanha.
Seu filho, que a acompanhou de perto até o fim de seus dias, pôde afirmar sem receio: “Em 60 anos de convívio com mamãe, nunca a vi ter um capricho”.
Quanta renúncia de si mesma, quanto domínio da vontade não lhe foi necessário, durante sua longa existência, para que alguém pudesse fazer dela esse comentário tão simples, mas testemunho de tão grande equilíbrio de alma!
Alegrias e tristezas
O equilíbrio de alma de Dona Lucilia era ainda mais admirável 
nos momentos de provação, como foi o da inesperada morte do 
seu genro. Nessa ocasião, encontrou ela as acertadas palavras 
para consolar sua filha e sua neta (na foto, à direita e à esquerda 
dela, respectivamente)
A par das não pequenas cruzes que Dª Lucilia pacientemente carregava, duas grandes alegrias a acompanharam até o fim de seus dias.
A primeira delas provinha da Fé, que lhe dava a segurança de estar no bom caminho — o da Igreja Católica Apostólica Romana — e ao mesmo tempo a esperança inquebrantável da salvação eterna. Essa confiança de, após as tristezas presentes, vir a alcançar o Céu, pelos infinitos méritos do Salvador, era a alegria fundamental que iluminava como um luar sua existência.
A segunda era a vida familiar, e no seio desta, de modo particular, o fato de ter um filho — um “filhão” — ao qual ela queria muitíssimo bem e que com indizível afeto lhe retribuía. Foi esta uma das causas mais patentes de sua longevidade, surpreendente, apesar da frágil saúde e dos sofrimentos que suportou durante toda a vida.
Tanto as grandes alegrias e tristezas quanto as menores, Dª Lucilia, seguindo o insuperável e sublime exemplo da Santíssima Virgem, conservava-as como preciosa lembrança, meditando-as em seu coração. Por sua seriedade de alma, considerava todo o alcance dos fatos, e ia passo a passo fazendo da vida um severo exame, pois para ela tudo tinha uma dimensão grandiosa. Com essa profundidade de espírito encarava ela o falecimento de seus familiares, como o de seu genro Antônio de Castro Magalhães, ocorrido após uma fria madrugada de inverno.
Na região onde se situava sua fazenda, no norte do Paraná, a baixa temperatura fazia prever uma forte geada que comprometeria toda a plantação. Antônio, diante de perspectiva tão ruinosa, passou a noite inteira a cavalo, orientando os empregados na insana tarefa de espalhar pelo cafezal certas bombas de fumaça, as quais, segundo os entendidos, preservariam do desastre a imensa cultura cafeeira. Com o amanhecer passou definitivamente o perigo de geada e Antônio recolheu-se à sua residência para descansar. Algumas horas mais tarde, aparentando inteira normalidade, dirigiu-se à casa do capataz para ordenar algumas providências. Mas o esforço daquela afanosa e gélida noite fora-lhe fatal: ao cruzar o limiar da porta, caiu fulminado por um ataque cardíaco. Era 6 de agosto de 1955.
A inesperada notícia provocou profunda consternação na família. Imediatamente Dr. Plinio viajou para Cornélio Procópio a fim de cuidar da transladação do cadáver.
Nessa ocasião, Dª Lucilia, apesar da tão avançada idade, manteve um perfeito domínio de si, procurando ao mesmo tempo consolar sua filha e sua neta com doces palavras de esperança, para o que ela, como ninguém, sabia encontrar os termos mais adequados.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

sábado, 24 de novembro de 2012

Grande dama cristã

Ao lado de suas muitas e edificantes qualidades de alma, reluzia em Dª Lucilia uma firmeza irredutível na defesa dos princípios católicos. Com efeito, se alguém os ferisse de algum modo, ela se colocava numa posição mais ereta, parecendo até aumentar de estatura, e, sem perder a afabilidade, com tom de voz sempre calmo, logo atalhava:
— Não!... Isso não pode ser assim... — e punha os pingos nos “is”. Dr. João Paulo, pernambucano dos mais genuínos, tinha um temperamento muito ameno. No dizer de Dr. Plinio, era o homem mais pacífico que conhecera. Seus longos anos de vida conjugal com Dª Lucilia transcorreram na mais perfeita harmonia. Quando presenciava uma atitude mais enérgica dela, dizia ao filho, a meia voz  numa jocosa alusão a certo sangue herdado por ela de remotos antepassados:
— Ih!... Esta senhora espanhola!...
No trato com a esposa, Dr. João Paulo era sempre muito atencioso. Tinha uma voz sonora, de timbre agradável, e seu riso saudável era ouvido à distância. O ambiente afrancesado à paulista que Dª Lucilia criava em torno de si, formava um conjunto harmônico com a nota pernambucana e portuguesa, contributo de seu esposo.
 O vaso de cristal
Evidentemente, nos momentos de aflição de Dr. João Paulo, a bondade sem par de Dª Lucilia se voltava de modo especial para ele, com o desvelo de quem sabia penetrar no mais interno do sofrimento de uma pessoa e ali colocar uma gota de suavizante bálsamo.
Uma tarde, ao voltar do trabalho, Dr. Plinio encontrou seu pai sozinho no salão, com ar muito triste. Cumprimentou-o como sempre:
— Boa tarde, papai, como vai o senhor?
— Bem, obrigado — respondeu Dr. João Paulo melancolicamente. Seu filho, sem poder atinar com a razão de tal atitude, dirigiu-se ao quarto de Dª Lucilia, onde a encontrou recostada e rezando.
Ao vê-lo entrar, ela lhe fez um sinal com o dedo para falar baixo e pediu que se sentasse perto dela. Em seguida lhe disse num tom compassivo: — Filhão... Você viu como o pobre de seu pai está aborrecido? Esbarrou, sem querer, no seu magnífico vaso de cristal da Boêmia1, que caiu no chão e se despedaçou.
— Meu bem, papai quebrou o vaso de cristal?! — perguntou Dr. Plinio entre surpreso e penalizado, pois apreciava muito aquele objeto.
— Sim, mas ele está sofrendo muito... Bastaria uma palavrinha sua para fazer cessar a aflição dele. Você faria isso por sua mãe?
Dr. Plinio, em qualquer circunstância, perdoaria de bom grado a seu pai, e um mero vaso de cristal, por melhor que fosse, era muito pouco para ser causa de tanto pesar. Diante da afetuosa súplica de Dª Lucilia, dirigiu-se imediatamente ao lugar onde estava Dr. João Paulo a fim de tranqüilizá-lo e, sorrindo, disse-lhe que não se preocupasse, pois o acidente, aliás todo involuntário, não tinha importância. Suas palavras distenderam de imediato seu abatido pai, que recuperou o habitual bom humor.
Manifestações de afeto de Dª Lucilia, como esta, excediam de muito os limites do lar. Se até em relação a desconhecidos sua compaixão se fazia sentir tão viva quanto mais com os seus familiares, próximos ou até longínquos.
Visita inesperada
Certo dia estava Dª Lucilia à mesa, em meio a uma refeição, quando uma parente distante, a quem as provações da vida haviam desalentado a fundo, tocou a campainha do apartamento.
A empregada, tendo atendido à porta, veio pouco depois anunciar que estava ali Dª Fulana, querendo falar com Dª Lucilia. Esta, conhecendo as tribulações pelas quais passava aquela pessoa, interrompeu o almoço e foi solícita até o hall de entrada, acolhendo-a com grande afabilidade.
— Oh! Fulana, como vai? Entre por favor... Convidou-a a passar para a sala de jantar, ofereceu-lhe um lugar à mesa e colocou-a inteiramente à vontade. Era tal a confiança inspirada por Dª Lucilia que daí a pouco a visitante se animava a expor suas dificuldades e dores. Recebeu dela — como esperava — todo o consolo e estímulo para prosseguir, confiante na Providência Divina, pelas ásperas sendas da vida.
Mais uma vez, um conselho saído dos lábios de quem seguia a lei de misericórdia do Divino Mestre, constituiu poderoso auxílio a uma pessoa atribulada pelos reveses da vida. Este modo de proceder, no conjunto das virtudes de Dª Lucilia, era mais um ponto de resistência em relação aos desvios morais de seu tempo. Pois o mito do sucesso levava muitos de seus contemporâneos a afastar-se com menosprezo de quem era atingido pelo infortúnio, como se este fosse uma lepra cuja mera proximidade pudesse contagiar...
Amor alicerçado na Fé
De tudo quanto até aqui foi narrado, facilmente se deduz que o oceano de benquerença de Dª Lucilia por seu catolicíssimo filho tinha suas mais profundas raízes firmadas na Fé.
Era por ver em sua mãe um amor tão desinteressado e sublime à Igreja Católica que, instantes após a morte dela, Dr. Plinio, na câmara mortuária, fez esta impressionante afirmação:
“Eu a admirava muito mais por ela ser como era e pela virtude que nela discernia, do que por ser minha mãe. De tal modo que, se ela fosse mãe de outrem, e não minha, eu faria de tudo para ir morar junto a ela.”
Tais disposições de alma de Dr. Plinio, para as quais tanto contribuiu a formação dada por sua mãe, levaram-no, na longínqua década de 40, a fazer no Legionário a magnífica descrição de uma mãe católica. A cada passo desse artigo julgamos ver a figura nobre e serena de Dª Lucilia. Curiosamente, nessas comoventes linhas, nas quais transparece a admiração por insignes virtudes, refere-se Dr. Plinio à mãe de um outro...
A dama de cabeleira branca
Eu tinha diante de mim uma figura genuína de grande dama cristã. Em todo o seu ser, o tempo deixara a marca indefinível de fundas dores, sofridas com grande nobreza, com imensa suavidade de alma. Olhos calmos, belos e tristonhos, penetrantes mas doces, inteligentes mas serenos. O porte, o jeito, o traje tinha a elegância singela, nobre e despreocupada que a verdadeira educação comunica ao vestuário humano. O timbre de voz afável, reservado, cheio de matizes, revelava um coração a um tempo forte e delicado.
Pela janela entrava a jorros a claridade, que iluminava em certos momentos a cabeleira branca.
Um reflexo prateado, confundindo-se com a suavidade do olhar, se difundia então por sua fisionomia. Toda a luz faz pensar em felicidade. A luz destes cabelos brancos fazia pensar na felicidade extra-terrena. Era a grandeza da ancianidade cristã, santificada pelo mérito da maternidade, glorificada pela auréola discreta que os sofrimentos padecidos em união com Cristo deixam em toda alma e em todo semblante justo. Muita dignidade, certa majestade diríamos mesmo. Não a majestade árdua, esforçada e duvidosa do dinheiro, mas a majestade única e suprema que decorre da dignidade de mãe, sentida e vivida até as últimas fibras de um coração nascido de nobre estirpe.
Preciso dizer que a contemplação do que essa dama sofria, de quanto ela sofria, de como ela sofria, edificou-me, enlevou-me, encheu-me de veneração? Nunca vi mãe que oferecesse seu filho [a Deus] com espírito mais sobrenatural, embora com tão sentida dor. Fora, a grande metrópole vivia, suava e muitos pecavam. De mim para mim, pensei no valor expiatório deste sereno sacrifício. Os instantes que passei naquele apartamento foram inesquecíveis para mim.
Quantas vezes pensei depois disto, nesta genuína e grande dama cristã. E que especial inflexão de alegria teve o meu “Magnificat”, quando me lembrei do júbilo que naquele momento lhe deveria inundar o coração.
Perdoe-me ela se levantei indiscretamente o véu de seu recolhimento2.
De uma mesma ogiva, dois arcos que se completam
Tal como a dama cristã descrita por Dr. Plinio, Dª Lucilia, antes mesmo de seus filhos nascerem, generosamente os consagrara a Deus. Talvez tenha renovado seu oferecimento ao apresentá-los à fonte batismal, a fim de introduzi-los no seio da Igreja. Depois os levara a dar os primeiros passos nos caminhos da Fé e lhes ensinara a pronunciar, antes de qualquer outra palavra, os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria. Com seu exemplo, incentivara-os a praticar as virtudes que ela mesma lhes fizera conhecer através de narrações da História Sagrada.
Tendo Dr. Plinio, ao entrar para o Colégio São Luís, de enfrentar pela primeira vez o rijo embate da vida, Dª Lucilia o sustentara na fidelidade. A firmeza dela lhe servira de estandarte no decurso de incontáveis pugnas na Faculdade de Direito.
Já no Movimento Católico, Dr. Plinio fora penetrando ainda mais a fundo no conhecimento da doutrina e da História da Igreja. Chegara então para ele a vez de tomar respeitosamente pela mão a sua mãe e comunicar-lhe muito do que ele ia aprendendo de maravilhoso na Santa Igreja. Assim, um e outro, cada qual a seu turno, foram-se impregnando a fundo do espírito católico.
Essa catolicidade se refletia naturalmente na vida de oração de ambos, marcando de forma notável aquele recolhido e elevado ambiente do apartamento da Rua Alagoas. As preces do indômito batalhador, principal arma de todas as pugnas que travava, apoiadas pelas serenas mas intensas súplicas de sua mãe, subiam ao trono do Altíssimo a implorar graças especiais pela causa da Santa Igreja.
Nesses atos de piedade, enquanto Dª Lucilia se inclinava mais aos acordes da misericórdia, Dr. Plinio fixava suas intenções nas lides apostólicas. Esse convívio, ungido pelo silencioso fervor da mãe e do filho, constituía assim uma harmoniosa ogiva, em que um braço completava e apoiava o outro.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)
1) Uma fina peça, presente de Dr. Plinio a sua avó, Dª Gabriela.
2) Legionário, nº 745, 17/XI/1946.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

“Viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem”

Ao júbilo de Dona Lucilia pelo feliz regresso de Dr. Plinio da sua viagem à Europa no ano de 1950, somou-se, no início do mês de julho, como previsto, a alegria do casamento de sua neta Maria Alice, cujas festividades ficaram naturalmente a cargo de Dona Rosée. Ela tudo dispôs com seu requintado bom gosto.
Terminadas as comemorações nupciais e tendo partido os noivos para a lua-de-mel, Dona Lucilia, dada sua idade avançada, sentiu necessidade de algum repouso. Agora, ao menos, ela poderia reconfortar-se com a presença de seu filho, que tanto tinha para lhe contar de quanto vira na velha Europa: as maravilhas da França, os esplendores de Roma, as glórias da Espanha, os encantos de Portugal.
Nova separação
Porém, a companhia dele não duraria muito tempo. Passados dois meses, um amigo de outro estado do Brasil propôs-lhe realizar ali um trabalho que, segundo julgava, poderia beneficiar a Causa Católica.
Dr. Plinio, apesar de ver poucas possibilidades de êxito no empreendimento, aceitou a proposta por amizade à pessoa que o convidava. Essas novas atividades exigiam dele a permanência por algum tempo no próprio local, e assim, em setembro, para lá partiu.
Levantava-se para Dona Lucilia um novo dilema: por um lado desejava que seu filho obtivesse bom resultado, e nessa intenção rezava com ardor, mas, por outro, um eventual sucesso dele implicaria uma inevitável e mais prolongada separação.
Apesar de tudo, estava disposta a qualquer sacrifício em favor das exigências do apostolado. Numa carta enviada a Dr. Plinio, destacam-se palavras de conselho, perfumadas de sabedoria, nas quais o sentimento cede lugar à razão:
São Paulo, 28-IX-950
Filho querido!
Fui hoje à igreja de Stº Antonio, onde comunguei e rezei muito por ti para que sejas muito feliz (...), e possas estar logo de volta.
Como a nossa casa fica insonsa e feia sem você! Mas tambem, quando você vem, entra a primavera!
Rosée tem vindo com frequencia, e hontem, em “vol d’oiseau”, esteve Maria Alice.
Penso que você e [seu amigo] devem estar bem cansados com este trabalho (...), e por isso, é conveniente que [ele] venha com você para descansar um pouco.
O comício do Brigadeiro foi muito concorrido, e houve grande enthusiasmo, e muita linha.
Guardei o seu discurso, para você ler, caso não o tenha podido fazer. Fala com muita sobriedade, com nobreza, pois não ataca pessoa alguma, mesmo os seus adversarios. Estou bem impressionada, e com desejo de que ele seja eleito.
Pretendo, terminando esta, ir a um cinema, para contar depois a história para o meu queridão.
Por maiores que sejam as minhas saudades, aconselho-te a que não voltes antes de saber o resultado [do trabalho] ahi, pois de outro modo, pode parecer pouco caso. Quando se faz qualquer cousa, faz-se bem feito, e até o fim. Paciencia, paciencia querido!
Recomenda-me afectuosamente a [teu amigo].
Bem, querido, por hoje chega de prosa.
Com minhas bençans, envio-te muitos beijos e abraços.
De tua mãe extremósa,
Lucilia
P.S. Zili acaba de dizer-me pelo telephone, que D. Didita perdeu a mãe hoje á tarde, e que iria passar lá a noite, e que o enterro será amanhã ás nove horas. Pretendo ir lá amanhã, ás oito horas. Aviso-te, para que lhe mandes um telegramma.
Conforme Dr. Plinio receava, o campo não fora bem preparado de modo a alcançar êxito, e por isso resolveu, para gáudio de Dona Lucilia, retornar logo a São Paulo.

Viver, é estar juntos... Concepção ¨luciliana¨ da vida


Ainda antes de ele dar a conhecer a sua mãe o desfecho de seu empreendimento, esteve em sua casa o amigo que o convidara. Este, conversando com Dona Lucilia, disse-lhe gracejando ter tudo corrido bem. Julgava, com isso, causar-lhe grande satisfação. O visitante obteve como resposta apenas uma reserva polida, sem entusiasmo.
Dr. Plinio notou a reação de Dona Lucilia e, estando com ela a sós, durante uma prosinha, filialmente perguntou:
– Mãezinha, a senhora acreditou quando ele contou aquilo?
Ela respondeu:
– Sim.
– Surpreende-me que a senhora não tenha manifestado a menor alegria...
Ela então disse:
– Bem, você compreende que se tivesse obtido bom resultado em seus trabalhos, isso o obrigaria a se mudar para longe de casa e vir pouco aqui. E o convívio entre nós diminuiria muito! Para mim isso seria um grande sofrimento. Meu filho, viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem...
“Viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem...” A bela e luminosa frase superiormente exprime o que poderíamos chamar de concepção “luciliana” da vida!
O filme da coroação da Rainha Elisabeth II
Num domingo de março de 1952, uma das irmãs de Dona Lucilia e seu esposo foram jantar em casa dela. Terminada a refeição, Dr. Plinio convidou todos os presentes a irem com ele assistir ao filme da coroação da Rainha Elizabeth II, que estava sendo exibido num cinema da Praça da República, naquele tempo de ambiente ainda familiar.
Dona Lucilia ficou em especial agradada com o convite, não só por ser Dr. Plinio que lho fazia, mas também por ter ocasião de apreciar mais uma vez os costumes, modos de ser e de trajar ingleses.
Ao longo da projeção ela acompanhou atenta e maravilhada todas aquelas cenas ricas em simbolismo e bom gosto.
Terminado o filme, imagens deslumbrantes ficaram povoando a cabeça de todos durante algum tempo, a ponto de, ao sair do cinema, caminharem em silêncio, sem fazer nenhuma apreciação. No fundo, tudo aquilo clamava contra a vulgaridade da vida moderna, sem brilho nem glória.
Dona Lucilia, com a alma posta naqueles esplendores, teria em breve o que ela reputava o melhor do filme: a rememoração e os comentários feitos por seu filho, quando à noite se sentassem para a costumeira “prosinha”.
Essencialmente contemplativa, recordaria ela com saudades cheias de enlevo, até o fim de seus dias, aquela cerimônia de coroação que o desvelo de seu filho lhe havia proporcionado ver.
“Minha casa eram os olhos dela”
Além da esmerada prática diária dos atos de piedade, Dona Lucilia — empenhada em enriquecer ainda mais sua vida interior — entretinha-se na elevada consideração dos esplendores da Civilização Cristã. Seu espírito contemplativo era muito favorecido pelo amor à estabilidade, que agora as próprias circunstâncias de uma avançada idade tornavam propícia.
Uma das principais alegrias do dia-a-dia, consistia para ela na admiração das maravilhas criadas por Deus, de modo especial a diversidade e o valor cultural — muito mais do que o material — das almas e dos povos.
Dr. Plinio, que dela aprendera o gosto pela estabilidade, via-se na contingência de viajar muito, contudo, mantinha em São Paulo um ponto especial de referência: o olhar de sua bondosa mãe.
Nada o atraía mais. Por isso, ao retornar da rua, sua primeira preocupação era vê-la e sentir seu afeto, o que o levaria a afirmar em certa ocasião: “Minha casa eram os olhos dela, ali eu morava.”
“Minha mãe é muito melhor que a sua!”
Dr. Plinio não perdia ocasião para retribuir o afeto de sua mãe. Isto compensava, de alguma forma, as ausências impostas por suas obrigações, e sobretudo a aliviava do isolamento.
Muitas vezes externava este reconhecimento por amenos gracejos; o invólucro de um dito espirituoso dava maior alcance aos seus filiais sentimentos. Certa vez, estando Dona Lucilia ao lado do “filhão” em agradável conversa, ele lhe perguntou, referindo-se a um quadro de Dona Gabriela:
— Mamãe, quem é aquela senhora que está naquele quadro?
Dona Lucilia, estranhando a pergunta, respondeu num tom de voz que denotava ligeira surpresa:
— Meu filho... aquela é mamãe...
— Pois, olhe, minha mãe é muito melhor que a sua!
Dona Lucilia, um pouco desconcertada diante de um elogio que a colocava acima de sua própria mãe, a quem muito admirava, não tendo o que responder, tocando com a ponta dos dedos suavemente na mão de Dr. Plinio, como era seu hábito, apenas lhe disse:
— Ora!... meu filho, meu filho...
Quando muito elogiada por ele, Dona Lucilia alegava serem exagerados seus ditos, por não merecer tanto. Ele brincava então, e lhe chamava “Madame Merece Mais”, não permitindo que ela vencesse a carinhosa disputa. Dava-lhe a entender desse modo o quanto seus louvores ficavam sempre aquém da realidade.
“Não te derretas...”
Um dia ele lhe perguntou com uma pontinha de afetuosa ironia: “Mamãe, eu sou o filho que a senhora esperava?” Sem aguardar resposta, continuou: “De fato, a senhora gostaria que eu fosse um advogado brilhante, com barba longa...” Era o tipo humano do homem bem apessoado do tempo do pai dela, Dr. Antônio. “Pois bem — concluiu ele — a senhora acabou tendo um filho polemista!”
 Na intimidade, Dr. Plinio não poupava elogios nem manifestações de carinho a sua mãe, deixando-a por vezes enternecida. Era nessas ocasiões que, imitando sotaque português, Dr. João Paulo dizia a ela, gracejando:
— Não te derretas!...
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”de João S. Clá Dias)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Reencontro transbordante de afeto

Dona Lucilia e Dr. Plinio na década de 50
Uma viagem à Europa, para Da Lucilia, devia ter o carácter de peregrinação, num sentido lato, pois as maravilhas lá existentes são frutos da Civilização Cristã, e precisam ser admiradas com espírito religioso e, quase diríamos, meditadas. Desse modo, apesar de seu filho ser já homem feito, ela lhe recomenda correr menos e até visitar menor número de locais históricos, a fim de aproveitá-los melhor. Daí pedir a Deus em suas orações que a permanência de Dr. Plinio na Europa se prolongasse o mais possível, ainda quando as saudades levassem-na a implorar seu pronto regresso.
Em geral, o tempo age como elemento deteriorante das saudades, pois a recordação viva do bem que se perdeu vai sendo coberta pelo esquecimento e, por fim, nada mais resta a não ser uma ténue reminiscência. Tal não acontecia com Dª Lucilia. Sua grande dedicação e sobrenatural afeto por seu filho lhe fazia sentir mais saudades, à medida que os dias, por sua vez, pareciam transcorrer cada vez mais vagarosamente...

A viagem de Dr. Plinio à Europa, em 1950, caminhava para seu termo. Dirigira-se ele para a Cidade Eterna, onde o aguardava o mais importante de seus compromissos nessa passagem pelo Velho Continente.
Audiência com o Santo Padre
Conhecedora da profunda devoção de seu filho ao Papado, Dª Lucilia rezara confiantemente ao Sagrado Coração de Jesus para que ele obtivesse uma audiência com o Sumo Pontífice, no que foi atendida. Ao ler a extensa carta de Dr. Plinio sobre esse encontro, seu coração maternal exultou, e à medida que corria os olhos pela narração, ela o acompanhava em espírito, meditando nas consequências do fato. Em ação de graças, mandou celebrar uma Santa Missa, além de elevar redobradas preces a Nosso Senhor, a fim de Lhe exprimir seu reconhecimento pelo favor alcançado. Eis a missiva de Dr. Plinio:
 Roma, 13-VI
Mãezinha queridíssima do coração
Querido Papai
 Escrevo-lhes a 1,30 da noite, depois de ter tomado apontamentos (jornais falados, diríamos na gíria do 6º andar) desde 11 horas da noite até agora. Estou com todas as minhas orações para fazer. Tenho tido um mundo de contatos, tipo marquês Pallavicino, Príncipe Lancelotti, Príncipe Ruffo, Príncipe Chigi, Embaixador da Espanha junto ao Vaticano, etc. Mas o mais formidável foi o Papa. É favor entregar esta carta para o pessoal do 6º andar ver logo. Estávamos [um prelado amigo] e eu preparando o longo relatório para o Papa, e íamos telegrafar para aí pedindo orações, quando veio — com uma rapidez inusitada — a notícia de que o Papa nos receberia em audiência especial no dia seguinte.
Corre-corre tremendo para aprontar o relatório, que ficou concluído à ultimíssima hora, datilografado com o auxílio do Adolphinho. Fomos [o prelado], eu, e um Padre cubano, ex-colega [do primeiro] que servia de secretário a este. Atravessamos salões e salões, [o prelado] de grande gala, eu de roupa azul clara (....), o cubano com uma capa soleníssima. Na passagem, os Suíços e os “gendarmes” pontifícios apresentavam armas. Os salões cheios de diplomatas e de peregrinos. Afinal chegamos ao salão do Papa.
A audiência fora pedida em nome [do prelado] e meu. [Ele] entrou primeiro, e teve uma conversa de uns 10 minutos, ou pouco menos. Em seguida entrei eu e o Cubano. O Papa foi muito amável comigo. Pedi bênção especial para a Senhora e Papai, e tinha intenção de pedir para a família toda, pelo que traduzindo mal disse “mes parents”, o que quer dizer propriamente só os pais. Pedi também bênção especial para meus companheiros de trabalho. O Papa concedeu tudo muito afetuosamente, e benzeu os objetos de piedade que lhe levei. [O prelado amigo] disse ao Papa que eu tenho uma mãe que me quer um bem louco, e pediu mais uma bênção para a Sra. Como ousa [ele] mentir ao Papa por esta forma? (...)
Agora quanto ao regresso:
1 - Não sei como podem ter achado que eu estaria de volta dia 10. Só poderei sair daqui por volta de 15 ou 16. Quero visitar Veneza, depois ir à Suíça, onde tenho gente com quem falar. Da Suíça, França, onde pretendo tomar avião para Lourdes, e se possível interrupção em Portugal para tentar falar com a Irmã Lúcia de Fátima.
2 - Assim, correndo muito, estarei de volta em fins de junho, como disse no telegrama. “Cela vá de soi” que estarei presente para o casamento de Maria Alice.
3 - Quando eu marcar o regresso, telegrafarei. (...)
4 - Terei que ficar no Rio 24 horas. Assim, chegarei a São Paulo no dia seguinte ao de minha chegada ao Rio.
5- Ficarei no Glória. Quero que uma hora depois de o avião ter chegado Mamãe me telefone.
6 - Logo depois de ter falado com Mamãe e Papai, falarei também com Rosée e Maria Alice, se estas puderem estar perto. (...)
7 - Logo depois de ter falado com Papai e Mamãe, (...) quero falar com o pessoal do 6º ao menos os que estiverem disponíveis a esta hora.
8 - Daqui por diante, escrever-me ao Regina Hotel, Paris. Para Papai um longo e afetuoso abraço. Para Mamãe, milhões e milhões de beijos. A ambos peço a bênção, Plinio.
................
Meus carissimos do 6º. andar Como vêem, esta carta é tanto para vocês quanto para Papai e Mamãe. Acrescento que por deferência especial de Mons. Montini¹, assisti ontem a canonização de São Vicente Strambi na tribuna dos diplomatas, ao lado do embaixador e secretário do embaixador do Egipto! Sei que gostariam de mais notícias sobre a audiência. Esperem jornal falado.
Mil e mil abraços,
Plinio
Saudades e ansiosa espera
Esses pequenos e grandes fatos alimentaram, após a volta de Dr. Plinio, as abençoadas “prosinhas” noturnas de Dª Lucilia com ele. A cerimônia de canonização de São Vicente Strambi, por exemplo, terá sido, sem dúvida, tema de algumas delas.
Com efeito, Dª Lucilia, que tanto amava o protocolo e o cerimonial, ter-se-á encantado ao ouvir, dos lábios de seu próprio filho, a descrição de uma das mais belas pompas da Cristandade.
Quanto e com que brilho marcaram a História as gloriosas vitórias dos guerreiros romanos! Entretanto, as celebrações destas nada foram em comparação às preparadas pela Santa Igreja para elevar à honra dos altares e louvar seus heróis. Estes últimos terão seus feitos lembrados até o fim do mundo, em todos os recantos da Terra.
Aspecto da cerimônia de canonização de São Vicente Strambi,
Para o augusto ato da canonização de São Vicente Strambi, compareceram as mais insignes autoridades da Igreja presentes em Roma, todo o corpo diplomático acreditado no Vaticano, além de grande número de personalidades eminentes da nobreza romana, do mundo da cultura e da política. Por assim dizer, estava representado simbolicamente, na Basílica de São Pedro, o que de mais seleto há nas sociedades espiritual e temporal. Tudo para glorificar a heroicidade das virtudes de uma pessoa que talvez tenha levado uma vida obscura e apagada, entre as paredes de um mosteiro.
Esses e outros pensamentos terão passado pela mente de Dª Lucilia, enquanto aguardava a volta de Dr. Plinio para se deliciar com os pormenores do evento.
Embora não tivesse a certeza de que uma carta ainda o fosse encontrar em Paris — para onde ele seguiria de Roma —, e apesar de já estar se ocupando muito com os preparativos para o casamento de sua neta, não quis deixar de enviar-lhe um comentário a propósito da audiência dele com o Sumo Pontífice:
São Paulo 21-VI-950
Filho querido de meu coração!
Segue mais esta, “pour un en cas”², como dizem os franceses teus amigos, pois asseguram-me os do sexto andar e teu pai, que ao chegar esta a Paris, já estarás de volta, ou melhor, em casa. Será possível?
Estou escrevendo com uma pena de bico torcido, e muito tarde, e já cansada, ainda vou começar as orações, por quem está tão longe! Não sei dizer-te quanto alegrou-me tua visita ao Papa! Pedi tanto a Deus para que te desse esta graça, pelo que vou mandar dizer uma missa em ação de graças, por isso, e pelo bom resultado de tua viagem.
Até quando, querido? As saudades crescem, e são tantas, tantas,.... agora, na hora do nosso rosário, andando no salão!... Venha logo!
Bênçãos, beijos e abraços de tua mãe extremosa,
Lucilia
Reze por tua sobrinha e por nós, em Lourdes e Fátima!

De fato Dr. Plinio rezaria em Fátima, no local onde Nossa Senhora aparecera aos três pastorinhos, Lúcia, Francisco e Jacinta. Da primitiva azinheira, do cimo da qual a Santíssima Virgem lhes falara, nada mais restava, pois a devoção do povo a fizera desaparecer em pouco tempo, levando cada um seu pedacinho de lembrança... Apenas uma singela capelinha, que a Mãe do Céu mandara construir, recordava o ponto exato das aparições na Cova da Iria.
“Filhão, graças a Deus você é o mesmo!”
Às dez horas da manhã do dia 29 de junho, Dr. Plinio embarcou em Paris com destino ao Brasil. Em suas cartas não definira a data de seu regresso, com o objetivo de poupar a Dª Lucilia “a angústia da travessia”. No entanto, logo ao chegar ao Rio, pediu que fosse avisada, a fim de com ela poder falar pelo telefone. Após dois longos meses de ausência, contados dia por dia, minuto a minuto, pôde ela ter uma longa prosinha com seu “queridão”.
Na manhã seguinte, com o intuito de deixar tudo pronto para receber seu filho, Dª Lucilia não seguiu a recomendação médica de repousar até mais tarde. Mandou preparar um farto lanche a ser servido quando Dr. Plinio chegasse, pois certamente viria cansado da viagem e precisaria recompor as forças.
Uma vez tudo pronto, foi para o hall do apartamento e sentou-se à espera dele. Imenso foi o júbilo que lhe inundou a alma ao vê-lo assomar à porta. Abraços, beijos e bênçãos foram as primeiras manifestações de gáudio. Dona Lucilia, sempre idêntica a si própria, não poderia deixar de aliar, aos extremos de alegria, uma infatigável vigilância. Após os afetuosíssimos cumprimentos, afastou-se um pouco de seu filho e o fitou atentamente, com seu tranqüilo, sereno e penetrante olhar. Dr. Plinio não entendeu logo qual a intenção de sua mãe, mas, na expectativa, nada lhe disse. Ao cabo de alguns instantes de observação, concluiu ela, contente:
— Filhão, graças a Deus você é sempre o mesmo!
Em seguida, levou todos à sala de jantar, onde Dr. Plinio contou as primeiras impressões de viagem, enquanto tomava o saboroso lanche.
Essa tocante atitude de Dª Lucilia revela como a virtuosa preocupação pela perseverança de seu filho não só não esmorecia com o passar dos anos, mas crescia tanto quanto a estima que lhe devotava. Apesar de conhecê-lo bastante bem e ter plena certeza de ser ele “o melhor dos filhos”, não se fazia ilusão alguma acerca da natureza humana. Ela jamais faria o seguinte raciocínio: “Plinio é muito bom filho, católico exemplar e, portanto, na Europa não corre risco algum! Posso ficar inteiramente tranquila”. Seu modo de ver a realidade era bem diverso, e ela deve ter pensado o contrário: “É bem verdade que ele é um bom filho, mas, como todo homem, pode cair. A Europa é um continente de sedução e de prazeres. Ele vai com razoável quantia de dinheiro para gastar, levará uma vida bem diferente da que tem no Brasil. Irá a grandes restaurantes, estará em hotéis excelentes, de vida social intensa, frequentará a sociedade. O que passará por seus olhos e por sua imaginação durante a viagem? Essa velha Europa, eu e ele a admiramos tanto, mas... devolver-me-á ela meu filho tal qual ele é, ou com o espírito desfavoravelmente marcado?”
Como vimos, essas apreensões, acumuladas nos dois meses de ausência, foram logo dissipadas após os primeiros instantes de análise, feita, aliás, muito mais com o coração do que com a vista.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

1) Mons. João Batista Montini, futuro Papa Paulo VI, na época Substituto da Secretaria de Estado de S. S. Pio XII.
2) “Por via das dúvidas”.
 

sábado, 13 de outubro de 2012

Dias marcados pelas saudades


Dona Lucilia nofim da década de 1940;
ao fundo, um dos salões de sua casa
Tendo partido para a Europa às vésperas do aniversário de sua querida mãe, Dr. Plinio via aproximar-se o dia 22 de abril, pensando em como ela celebraria essa data tão cara aos dois. Mais um ano de Da. Lucilia ficará para trás. Na estabilidade das boas disposições e equilíbrio dela, sentia ele um sustentáculo àquela determinação de fidelidade ao bem, que tomara desde sua adolescência, no Colégio São Luís. Por seu lado, com o correr do tempo, cada vez mais Dª Lucilia ia assumindo a fisionomia bondosa, doce, afável e sofredora, mas firme, definida e categórica, facilmente discernível em suas derradeiras fotografias.
Cartas afetuosas e muitas flores
Logo na manhã daquele 22 de abril um telegrama chega a seu apartamento:
BARCELONA – 22.04.50 MILHÕES BEIJOS AFETUOSÍSSIMOS
PLINIO
 Dr. João Paulo à mesma hora entregou a segunda carta deixada por Dr. Plinio, acompanhada de um belíssimo bouquet de flores. Dessa forma, ao iniciar seu dia, ela já recebia manifestações de amor e veneração de seu filho, tal como se ele não estivesse ausente. À vista do carinhoso gesto, seu coração se comoveu e não conseguiu conter as lágrimas, só que, desta vez, de puro contentamento, enquanto lia estas expressivas linhas:
13 de Abril 22-IV¹
Meu amorzinho querido.
Quis que, logo ao acordar, minhas felicitações fossem as primeiras, com as de Papai. Mil beijos, mil abraços, carinho sem fim, um oceano de saudades.
Poucas vezes fiz um sacrifício tão grande quanto o de marcar viagem nas vésperas de seu aniversário, que eu gostaria imensamente de passar com a Senhora. Mas, meu bem, foi indispensável organizar as coisas assim. A ida foi antecipada: se-lo-á implicitamente a volta.
Hoje, comungarei pela Senhora, e pensarei na Senhora o dia todo.... o que aliás farei nos outros dias também!
As flores da casa são todas compradas por mim.
Mil felicidades, querida. Que Nossa Senhora dê tudo à Senhora.
Pede sua bênção com um afeto e um respeito sem conta o seu taludíssimo e esporudíssimo ex-Pimbinche
Plinio
Alguns dias depois, ainda a propósito de seu aniversário, Dª Lucilia recebeu mais uma carta de Dr. Plinio, escrita já da Espanha e datada de 21 de abril, na qual ele manifestava o quanto lhe doía não poder estar em São Paulo no dia seguinte.
Recorramos uma vez mais às cartas enviadas por Dr. João Paulo a seu filho, a fim de saber como transcorreu para Dª Lucilia esse dia.
Aqui chegou no dia 22, cedo, teu telegrama de Barcelona. E logo mais, o do Adolpho. Lucilia se comoveu muito, não só com o telegrama, como com a carta que aqui ficou para lhe ser entregue naquele dia: derramou o pote após exclamações de ternura e saudade e mergulhou fundo na reza depois.
Tudo correu bem no aniversário dela: tivemos um bom jantar, florida a mesa com uns magníficos cravos vermelhos; a sala de visitas teve umas lindas flores, compradas com os cem que para isso deixaste...
Tendo sido aquele dia tomado por visitas, às quais, por sua inalterável benevolência, Dª Lucilia ia receber com os já conhecidos requintes de boa-acolhida, só pôde responder a seu filho na manhã seguinte. Fê-lo com palavras repassadas de ardente amor a Deus:
São Paulo, 23-04-50 Filho querido de meu coração!
De todo o coração, de toda a minha alma, agradeço-te a carta tão afetuosa que me deixaste, e que tanto conforto me trouxe, e mais as lindas, “belíssimas mesmo” palmas brancas, rubras, amarelas e lilases, que Zili enviou-me pela manhã. Chorei é verdade, mas, “graças a Deus”, foi de felicidade por ter recebido eu, tão indigna, “liberal”, a imensa dádiva dos Sagrados Corações de Jesus e Maria Santíssima, de um filho tão santo, tão bom e carinhoso, que abençôo de todas as veras de minha alma, por quem peço toda a proteção Divina, e a Luz do Divino Espírito Santo. Destas palmas, levei duas para a capela do “sexto andar”, uma para tua imagem do Imaculado Coração de Maria em teu quarto, onde, como de costume rezei por ti, e duas outras para a imagem do Sagrado Coração de Jesus, no salão (e o resto, muitas, na jarra do imperador).
Preciso dizer-te as saudades e a falta que me fizeste? Pois bem, com menos intensidade, era o que todos sentiam. (...) Fui hoje ouvir missa e comungar por ti na “minha” igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde encomendei uma missa por tua intenção, e bom êxito em teus empreendimentos. Estou ansiosa por receber uma carta tua, trazendo-me tuas impressões do lugar. As primeiras, geralmente não são favoráveis; mas depois aos poucos, já ambientado, aprecia-se muito mais. Escreva-me sempre; sim? Vê se encomenda a missa para Nª Srª da Begoña por intenção de Rosée; sim?
Com muitas saudades, “espiritualmente” faço-te uma cruzinha na testa, e... cubro-a de beijos e bênçãos. Um longo e saudoso abraço, Pimbinchen querido, de tua “manguinha” afetuosa,
Lucilia
Algumas impressões de viagem
Finalmente, por volta de 25 de Abril, Dª Lucilia recebeu a primeira carta de seu filho com as tão ansiadas notícias e impressões de viagem.
Estaria ela com certeza curiosa de saber qual a reação de Dr. Plinio na terra de El Cid Campeador. No entanto, sendo o povo espanhol de psicologia tão diferente da brasileira, já previa que seu filho podia sentir não pequena estranheza. Daí precavê-lo, na carta anterior, para não se deixar levar pelas primeiras impressões, as quais “geralmente não são favoráveis”, mas procurasse logo se ambientar e desse modo tirar todo o proveito da viagem.
Devido à formação recebida de Dª Lucilia, desde o início Dr. Plinio apreciou, acima de tudo, a catolicidade militante daquele heróico povo, que empreendera, havia pouco tempo, vitoriosa cruzada contra o comunismo. Era essa virtuosa combatividade a nota mais saliente nos belos monumentos por ele visitados em companhia de cultos e vivazes amigos espanhóis, empenhados no simpático afã de lhe fazer conhecer as principais maravilhas do país.
Madrid, 18-IV-50
Mãezinha querida do meu coração, e querido Papai.
Escrevo-lhes depois de três dias de intensas viagens, isto é, 24 horas de avião, um dia de visitas em Madrid, e um dia de Escorial. Faço-o com enormes saudades. É meia noite, hora de uma ultima conversa com minha gente do 6º andar no Fasano, e poucos minutos antes de minha conversa “tête-à-tête” com a Lú.... Como gostaria de os ter todos comigo aqui!
A viagem aérea foi boa. Cerca de 24hs. tocamos em Recife: aeroporto bem arranjado e calor tremendo. A cidade se percebia bem em todos os seus contornos graças à iluminação: é bem grande. Dormimos passavelmente e no dia seguinte voamos sobre o Saara, que pudemos ver muito bem e por muito tempo. O dia ainda era claro quando sobrevoamos Gibraltar, vendo bem o forte. Chegamos a Madrid entre 21 e 22 horas. (...)
Nosso hotel é razoável. Encontrei logo à chegada o Cel. Barrera (filho do Marquês de Valdegamas e Conde de Miraflores) que estava à minha espera há dois dias. [Estava] com seu cunhado Olague (historiador prodigiosamente culto e inteligente, e que parece muito influente aqui). Visitei o Prado com eles. Os Murillos, Velasquez, Ticianos, Flamengos, Goyas, pululam por lá. A riqueza do Museu é indescritível. Quanto à beleza dos quadros é supérfluo dizer algo. Depois fomos à casa de Lope de Vega onde o Olague nos apresentou à Embaixatriz (notável) da França, em cuja companhia a visitamos.
Hoje pela manhã, Barrera! Depois, Olague, para um passeio ao Escorial. Este – como as outras coisas que tenho visto aqui — não é descritível em palavras. Rezei junto à sepultura de Filipe II, à cama em que expirou, e à sepultura de Dom João d’Áustria, a um enorme autografo de Santa Teresa, e ao tinteiro em que ela escreveu.
Amanhã, se Deus quiser, continuarão as visitas.
E a Lú? Tem dormido bem? Tem dormido à hora? Tem tido energia em matéria de saudades? Tem tomado muita água Prata? Tem tomado muito taxi?
E Papai? Tem tido muito trabalho com o escritório? Tem comido muito coco?
Para os do 6º andar, todos os abraços possíveis. Para Papai, com abraços muito afetuosos, inúmeras saudades. E para a Senhora, minha Mãezinha, o quê? Tudo quanto pode haver neste mundo em matéria de abraços, beijos, carinho, respeito, saudades, afecto; e abençoe o seu filhão.
Plinio
“Quantas saudades, quantas saudades...”
No dia 3 de maio, um dos amigos de Dr. Plinio partia rumo a Paris. Embora levasse uma carta escrita poucos dias antes por Dª Lucilia, as muitas saudades dela fizeram-na escrever outra, de última hora. Por estas linhas, vê-se novamente como o que mais almejava para seu filho era um acréscimo em graça, e com empenho o pedia a Deus.
Não perde a ocasião para dar pequenos conselhos ao seu “taludíssimo ex- Pimbinchen”, e encerra a missiva com mais uma tocante mostra do quanto a virtude da gratidão era sólida em sua alma:
S. Paulo, 3-5-1950.
Meu filho tão querido!
Quantas saudades, quantas saudades.
Permita Deus, que te encontres muito bem de saúde e de espírito, cada vez mais entusiasmado, curioso, e com acréscimo de fé, graças, que, como bom filho, tanto mereces. Dize a teus caros companheiros e amigos, que todos estes votos faço extensivos a eles.
Fui hoje, às oito e meia, ao Sagrado Coração de Jesus, onde comunguei e assisti a uma missa que havia encomendado pela tua felicidade e da de teus empreendimentos.
Penso que, “uma vez, ao menos, para conhecer”, vocês deveriam ir aos teatros da “Opéra”, “Comédie Française”, e ao “Odeon”.
Escreve-me sempre; sim? Recomenda-me ao “grupo”.
Ia me esquecendo de falar-te em José Gustavo. Yayá e Dora fizeram-me ver a falta que faz no salão do “sexto”, um bom retrato (maior) de José Gustavo, com o que concordo plenamente. Lembrem-se e contentem-se com as dádivas em São Sebastião, e o bom aluguel do sexto que o Antoni fez, e quanto lhe seria grato ver lá um bom retrato do filho! Concorde comigo; sim? eu te peço!
Terminando, peço-te também orações em Fátima, Lourdes e Stª. Catharina.
Saudosa, abraço-te e beijo-te muito e muito!
Abençoa-te, tua mãe extremosa,
Lucilia
1) Dr. Plinio colocou as duas datas na carta. A primeira era do dia em que a escreveu.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)