sábado, 25 de agosto de 2012

Invariável paz de espírito

Em seus últimos anos de vida, Dª Lucilia faria brilhar, ainda mais, sua afabilidade e seu modo de ser respeitoso, em contraste com a vulgaridade crescente do mundo moderno. Embora sua existência tenha transcorrido em grande parte no século XX, era ela uma característica senhora do século XIX, tendo-o, por assim dizer, prolongado em torno de si, até o fim de seus dias. Tão séria e grave quanto afável, praticava uma delicadeza em nada parecida com a amabilidade comercial contemporânea. Muito pelo contrário, tinha perfeita noção de sua própria posição e tratava cada qual segundo o modo de gentileza que a este correspondia.
Por outro lado, era ela digna de veneração por uma certa grandeza, estável, segura e invulnerável às mudanças dos tempos, própria a realçar o caráter augusto de sua alma, que transparecia de modo especial nas circunstâncias mais difíceis.
Resignação ante a morte
Em meados de 1961, Dª Lucilia viu os deveres de apostolado levarem seu filho para um pouco mais longe... O incansável batalhador católico já não era solicitado apenas por seus discípulos de diversas cidades de nosso País, mas também de outras nações, posto que sua obra se irradiava pelos cinco continentes. Dessa feita, fora ele convidado a assistir a um congresso da revista Verbo, em Buenos Aires.
Para encerrar a promissora estadia na capital portenha, Dr. Plinio foi jantar com seus amigos mais próximos — argentinos e brasileiros — num restaurante francês, onde celebraram, em ameno convívio, os resultados obtidos. Mal podia ele, entretido nessa desanuviada comemoração, suspeitar que, em São Paulo, Dª Lucilia acabava de sofrer um súbito ataque cardíaco e estava às portas da morte.
De volta ao hotel, após o jantar, Dr. Plinio recebeu do recepcionista um telegrama. Abriu-o imediatamente. O horizonte que até há pouco lhe descortinava alvissareiras promessas ficou repentinamente toldado, pois tratava-se de uma mensagem, enviada por Dª Rosée, com esta terrível notícia: “Mamãe mal à morte, ataque de coração violentíssimo! Telefones interrompidos. Venha logo para alcançá-la ainda com vida.”
Bem podemos conceber a aflição que estas curtas frases causaram a tão dedicado filho. Seu desejo, naquele instante, foi o de vencer, de um só passo, a longa distância que o separava de sua mãe queridíssima, que talvez já estivesse transpondo os umbrais da eternidade. As tentativas de obter uma ligação telefônica para São Paulo revelaram-se infrutíferas, dificuldade que aumentou o sofrimento dele.
Permaneceu então, durante toda aquela noite, que passaria insone, no salão do City Hotel, onde estava hospedado. Aguardaria assim os primeiros lampejos da aurora rezando e — por que não dizê-lo? — chorando copiosamente, até o momento em que o clarear do dia lhe indicasse ter chegado a hora de ir para o aeroporto. Tendo se dirigido para lá, foi informado de que só haveria vôo de Buenos Aires a São Paulo muito mais tarde. Não querendo esperar mais, resolveu alugar um pequeno avião particular que partiu às 5h, levando-o até Porto Alegre, de onde embarcou em avião de carreira, ato contínuo, para a capital paulista.
Dr Plinio durante sua viagem à Argentina 1956
Enquanto cruzava os ares, Dr. Plinio sentia tremenda opressão de alma e ia preparando o espírito para o momento em que, ao desembarcar, reencontrasse seus amigos. Pela atitude destes perceberia, num relance de olhos, qual o estado de sua mãe.
Assim, ao descer do avião, procurando avistar algum rosto conhecido entre as pessoas que aguardavam os passageiros, distinguiu um de seus mais antigos companheiros de luta, que logo lhe fez um grande aceno tranqüilizador.
Após os cumprimentos de boas-vindas, a primeira pergunta de Dr. Plinio foi obviamente sobre o estado de saúde de Dª Lucilia, recebendo do amigo esta consoladora resposta:
— Graças a Deus, ela está fora de perigo. Teve um fortíssimo ataque do coração, mas recuperou-se bem e já está sentada na cama, conversando normalmente. Os próprios médicos que a atenderam estão pasmos com a reação dela. Entretanto, é bom o senhor estar prevenido para uma estranha coincidência: na hora em que chegar à sua casa, estará partindo de uma residência vizinha um enterro. Portanto, não se assuste. Estávamos muito preocupados, pois o senhor poderia pensar que se tratasse do enterro de Dª Lucilia...
Transpondo afinal as portas do “1º Andar”, o último obstáculo que o separava de sua estremecida mãe, Dr. Plinio encontrou-a reclinada no leito, conversando calmamente com Dª Rosée e Dª Maria Alice. Aquela venerável fisionomia de anciã, emoldurada por cabelos prateados, externava tanta paz de alma, que absolutamente não se diria haver estado, poucas horas antes, a um passo da morte.
Logo após os primeiros cumprimentos, ela lhe perguntou como estava de saúde.
— Minha saúde está ótima! Mas o que eu quero saber é como está a da senhora!
Mesmo sentindo muito a falta de seu “filhão querido”, cuja presença naquele angustioso transe lhe seria de grande consolo, suportou mais essa provação com extrema serenidade.
A chegada de Dr. Plinio representou para ela novo alento. Embora ele não pudesse depositar em sua fronte o costumeiro ósculo, por estar fortemente resfriado, suas manifestações de carinho e afeto reconfortaram-na e incutiram ânimo naquele coração que por seu filho tanto pulsava!
Rápida foi a melhora de Dª Lucilia. Já no dia seguinte, seu médico, o Dr. Brickman, deu-lhe licença para se levantar e andar pela casa. Cerca de dez dias depois retornou ele para um controle de rotina. Tendo-a examinado com o estetoscópio, voltou-se surpreso para Dr. Plinio e exclamou:
— Mas, não é possível!
E como que não acreditando em seus próprios ouvidos, auscultou-a de novo, cuidadosamente, e disse:
— Olhe, o coração dela está tão bom que eu diria ser o de outra pessoa...
A pronta recuperação de Dª Lucilia era o resultado de sua serena e católica resignação diante da morte. Ao longo de sua extensa caminhada por esta terra de exílio, foi se preparando, calma e resolutamente, com inteira confiança no Sagrado Coração de Jesus e no Imaculado Coração de Maria, para transpor os umbrais da eternidade. Vendo-se na iminência de comparecer perante o tribunal divino, conservou a paz que nunca a abandonou. Será talvez essa qualidade de alma uma das causas de sua longevidade. Viveria ela tranquilamente, sem maiores preocupações de saúde, mais sete anos.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Devoção ao Sagrado Coração de Jesus

Imagem Sagrado Coração de Jesus -
Igreja do Sagrado Coração
São Paulo
Não era apenas por razões naturais que Dª Lucilia dedicava a seus filhos intenso afeto. A raiz mais profunda deste era sua ardente devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a Quem tanto orava, como relataria anos mais tarde, numa carta a Plinio, com palavras cheias de unção:
“Agradou-me imenso saber que quando tens saudades minhas, rezas diante do meu oratório! Eu também rezo tanto por ti; o Sagrado Coração de Jesus, nosso amor, será teu salvaguarda e protetor! filho querido do meu coração.”
Tal devoção aliada à atmosfera de recolhimento que Dª Lucilia mantinha no lar tornava-o propício  à prece e à contemplação. Dr. Plinio  se lembra de, muitas vezes, ao voltar de algum passeio ou festa infantil, encontrar a casa imersa num ambiente que lhe evocava o som grave, nobre e aveludado do carrilhão da , Igreja do Coração de Jesus. Isso contrastava com a superficialidade e a dissipação que já nos remotos anos 20 vinham marcando cada dia mais a sociedade de nosso século, fazendo-lhe entender melhor o modo de ser, invariável e profundo, de Dª Lucilia. “Foi por esse motivo que tomei uma resolução: de minha parte, também vou viver assim!” — concluiu Dr. Plinio.
Rosée e Plinio - Filhos de Dona Lucilia
No fundo, ia ensinando os filhos a viver de maneira virtuosa, pois era  o que mais ardentemente desejava. Daí seu grande empenho em lhes dar uma esmerada formação religiosa. A uma excelente observadora como ela não foi necessário muito tempo para notar que Fräulein Mathilde, embora exímia educadora,  não tinha a atenção tão voltada para o sobrenatural quanto seria desejável. Tanto melhor para os filhos pois sua própria mãe tomará sobre si essa tão elevada tarefa.
Dª Lucilia também incentivava Rosée e Plinio a uma atitude de piedade em relação às imagens por ela colocadas em seus quartos, e as osculava por vezes quando lá entrava.
Dr. Plinio se lembra dos idos tempos de seus 6, 7 anos de idade, época em que aprofundou suas comsiderações sobre Nosso Senhor Jesus Cristo, ao contemplar suas imagens em casa e em igrejas, ou lendo livrinhos para crianças:
“Já nos meus primeiros anos, tinha eu a convicção de que Ele era o Homem-Deus, porque mamãe o tornava claríssimo nas suas narrações da História Sagrada”.
Tão rica e penetrante foi a influência dela sobre os filhos que Plinio, com apenas quatro anos, de pé sobre uma mesa, chegou a dar aulas de catecismo aos criados da casa, transmitindo-lhes o que ouvira dos piedosos lábios maternos.
De outro lado, impressionava vivamente as crianças verem em Dª Lucilia a completa rejeição ao demônio, o adversário do gênero humano. Tinha repugnância até ao nome dele, que não pronunciava senão quando era indispensável, e assim mesmo com expressão discretamente desagradada. Reputava ela — com toda a razão — que o simples fato de mencionar tão abjeto ente, sem absoluta necessidade, podia parecer como uma invocação dele.
Um convívio que conduziu ao amor à Santa Igreja
Igreja Sagrado Coração de Jesus- São Paulo
Aos domingos, Dª Lucilia levava os meninos à Missa no Santuário do Sagrado Coração de Jesus, o qual, decorado com bom gosto, continha verdadeiras obras de arte.
Certa vez, quando Plinio assistia à Missa ao lado de sua mãe, formou-se naturalmente em seu espírito, por uma compreensível associação de imagens, uma impressão de conjunto da igreja: o convite à piedade que, em sua alma, produziam as imagens dos santos; os vitrais de nobres e matizadas cores, fazendo pendant cromático com as melodias ao mesmo tempo majestosas e afáveis do órgão; os paramentos solenes do celebrante e os esplendores sacrais da liturgia... Plinio sentiu por esse magnífico conjunto o quanto de religioso e de sobrenatural pairava no ambiente. Suas vistas se voltaram finalmente para a imagem do Sagrado Coração de Jesus, o arquétipo divino de seus melhores anseios, e compreendeu ser aquela atmosfera um fiel e rico reflexo do próprio Deus. Em sua alma brotou o ato de Fé e de amor: “A Santa Igreja, Católica, Apostólica, Romana! Ela é tudo e vale tudo; e nada se equipara às mil perfeições d’Ela!”
Enquanto nisso cogitava, voltou o olhar para sua mãe, que estava a seu lado, e percebeu como a alma dela era afim com todo aquele ambiente. Nela viu um reflexo da Santa Igreja, o que o levou a compreender e amar ainda mais essa divina instituição.
“Prestando atenção na Salve Regina, entendi mamãe por inteiro”
Christianus alter Christus... Guardadas as infinitas proporções que separam a criatura do Criador, e as imensas distâncias de qualquer homem em relação à Santíssima Virgem, podia-se ver em Dª Lucilia marcante semelhança com o Sagrado Coração de Jesus e com Nossa Senhora. Esta foi a melhor contribuição dela para a formação dos filhos. Contribuição, aliás, subconsciente, porquanto sua humildade lhe vedaria fazer considerações desse gênero. Recorda-se Dr. Plinio com enorme e carinhoso reconhecimento:
“Mamãe era excelente como consoladora. Quando dela me aproximava devido a alguma aflição, ou a uma situação sem saída, bastava ouvi-la dizer ‘meu filho, o que é?’ e metade do problema já se desfazia.
Frequentemente, eu já havia batalhado para encontrar uma solução...
“Fitava-a e aguardava: ‘Quero ver como ela se sai desta’.
“Ela me olhava pensativa, sem nada de carranca, com uma enorme calma. Dizia-me, então:
“— Bem, vamos arranjar isto assim...
“Antes mesmo de saber o que ela faria, estava certo de que o caso seria resolvido. Era um ato de bondade aqui, um ato de misericórdia ali, um perdão acolá, um conselho mais adiante e uma fina e completa solução, naturalmente com sacrifício para ela. Eu saía super-enlevado!
“O afeto de mamãe era envolvente e estável. Às vezes eu despertava à noite e notava sua presença ao lado de minha cabeceira, acariciando-me e fazendo sinais-da-cruz em minha testa, antes de ela ir-se recolher. Era como um bálsamo perfumado e suavizante, que me fazia um grande bem. Nunca diminuía nem uma sombra, qualquer que fosse o dia, a hora, as circunstâncias, as condições de saúde. Eu sentia poder contar com ela até o fim, fizesse o que fizesse.
“Ela dava muito valor ao fato de as pessoas lhe quererem bem, mas, se não lhe quisessem, sua atitude era a mesma. Nunca guardava ressentimento de alguém.
“Eu percebia que a fonte de seu modo de ser estava em sua devoção ao Sagrado Coração de Jesus, por meio de Nossa Senhora.
“Quando Nossa Senhora me concedeu a graça de, pela primeira vez, prestar atenção na Salve Regina, entendi mamãe por inteiro, pois abri os olhos para aquela Mãe toda celeste e indizivelmente mais alta e mais perfeita do que ela. Assim nasceu minha devoção a Nossa Senhora.”
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)