segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Longa e penosa separação

Corria o ano de 1950, e Dr. Plinio devia, pela primeira vez, viajar para longe de Dª Lucilia. Como fazer para tornar suave essa ausência à sua extremosa mãe, e poupar-lhe preocupações?
Apesar de os Estados Unidos estarem adquirindo crescente preeminência entre as nações do Ocidente, e por todo lado se impusesse a idolatria do progresso material, a Europa ainda se mantinha como pólo de todas as atenções, os padrões europeus continuavam a atrair a admiração e a servir de modelo universal, e para lá convergiam turistas do mundo inteiro.
O pináculo de grandeza que o Velho Continente representava nunca deixou de ser objeto do olhar analítico e enlevado de Dª Lucilia, e ela sabia interpretar a fundo o grande valor das obras e instituições nascidas do gênio europeu. Com seu espírito sobrenatural, compreendia não ter sido possível serem executadas sem o auxílio da graça. Segundo seu modo de ver, o Preciosíssimo Sangue derramado por Nosso Senhor Jesus Cristo no Gólgota, para redimir o gênero humano, era a causa primeira da cavalaria, das universidades, das corporações de ofício, dos hospitais, das catedrais, dos castelos, do gótico, da pulcritude dos vitrais e de tantas outras maravilhas.
Mas, depois de tantas convulsões, restaria no Velho Continente algo da antiga fidelidade? Haveria movimentos ou pessoas capazes de agir eficazmente para restaurar os tradicionais valores da Civilização Cristã? A esperança de uma resposta afirmativa levou Dr. Plinio a viajar, em abril de 1950, à Europa. Poderia, desse modo, ampliar seu leque de relações com pessoas e instituições afins com sua linha de pensamento e, por assim dizer, apalpar com as próprias mãos o que permanecia de pé.
Dona Lucilia só soube da viagem de seu filho quando este já havia cruzado o Atlântico. Após os primeiros instantes de tristeza na perspectiva da prolongada ausência dele, conformou-se com magnanimidade, em vista dos possíveis benefícios para a Causa Católica daí decorrentes e com os olhos postos na imagem do Sagrado Coração de Jesus, entregou-se empenhadamente às orações pelo bom êxito da viagem, confiando ao Divino Redentor suas apreensões.
Planos para amenizar a separação
Pouco depois da Páscoa de 1950, apresentara-se uma ocasião propícia para a viagem de Dr. Plinio ao Velho Continente, corroborada por uma razão de índole doméstica: Maria Alice, sua sobrinha e afilhada, contrairia matrimônio em julho, e ele desejava estar presente à solenidade. A coincidência de tais circunstâncias obrigou-o a marcar a partida para meados de abril, poucos dias antes do aniversário de sua mãe. Bem sabia ele a apreensão e a dor que o anúncio da viagem causaria a Dª Lucilia, não só pela perspectiva de uma longa ausência, como também pelas preocupações várias às quais ela se entregaria.
Com efeito, nascida no século XIX, Dª Lucilia utilizava o prisma de seu tempo de mocinha para analisar as delongas e os perigos de uma travessia oceânica. A fortiori em se tratando de viagem de avião! Guardava viva lembrança do tempo em que a aeronáutica estava em seus primórdios, e eram comuns os acidentes fatais. E não lhe bastaria para tranquilizar o fato de, em 1950, já se terem tornado rotineiros e seguros os percursos aéreos intercontinentais.
No intuito de poupar preocupações a ela e evitar a dor da despedida, Dr. Plinio arquitetou uma pia fraus. Combinou com Dr. João Paulo, Dª Rosée e os parentes mais próximos de dizer a Dª Lucilia que ele ia ao Rio de Janeiro, para onde tinha o costume de viajar com relativa assiduidade. Assim ela concluiria tratar-se de uma curta ausência. Na realidade, ele estaria no Rio de passagem, para tomar um dos aviões que partiam para a Europa.
Quando desembarcasse na Espanha — primeira etapa da viagem —, enviaria a Dª Zili, sua tia, um telegrama confirmando a chegada. Esta poderia então revelar toda a verdade a Dª Lucilia, a qual, ao mesmo tempo, receberia de Dr. João Paulo, acompanhada de uma cesta de flores, a primeira de duas cartas que Dr. Plinio deixaria redigidas.
Horas mais tarde, a campainha do apartamento soaria. Outro arranjo floral encomendado por Dr. Plinio representaria nova manifestação de filial carinho.
Para amenizar o choque, Dr Plinio mandaria florir todo o apartamento
Em 22 de abril, dia do aniversário dela, a segunda carta de felicitações, em poder de Dr. João Paulo, ser-lhe-ia entregue, juntamente com um bouquet de flores. Ao menos essas pequenas atenções, transbordantes de afeto, a consolariam um pouco pela ausência do “filhão”. Por sua vez, as irmãs e outros parentes de Dª Lucilia se comprometeram a lhe fazer companhia mais assídua e levá-la a passear, para distraí-la.
Combinados nas minúcias todos os detalhes, na manhã de 15 de abril, sábado, Dr. Plinio foi despedir-se de Dª Lucilia, como fazia ao viajar.
A despedida
Era hábito de Dª Lucilia permanecer, acordada, no leito até mais tarde, pois sua frágil saúde exigia muito repouso, e ela aproveitava esse período para rezar longamente. Não raras vezes, ao se despedir de sua mãe, Dr. Plinio a encontrava absorta em piedosa oração. Conforme a hora, o quarto estava iluminado apenas por um abat-jour e com as venezianas fechadas. Passadas as 10 horas da manhã, ela mandava abri-las.
— Mãezinha — dizia-lhe ele —, já está na hora de eu ir embora.
— Filhão... então é o momento de nos separarmos?
O tom interrogativo e meigo daquelas poucas palavras como que brandamente dizia: “Meu filho, então você vai deixar sua mãe?” Não devia ser fácil resistir a tão suave apelo, mas o dever o obrigava a outra resposta:
— Meu bem, tenho de ir.
Nesses instantes, Dª Lucilia deixava transparecer sua benquerença ainda mais do que no dia-a-dia. Porém a despedida, sem perder seu caráter afável, se revestia sempre de certas formalidades, bem ao modo dos Ribeiro dos Santos. Dr. Plinio osculava primeiro a mão de sua mãe, depois a fronte e várias vezes a face. Dona Lucilia lhe fazia várias cruzinhas na testa, enquanto, com os olhos semicerrados, sussurrava algumas orações ou formulava em seu interior alguns pedidos, cujo teor ela nunca revelava; e, por discrição, seu filho nunca a inquiria sobre isso. Por fim, abençoava-o e o acompanhava com o olhar até a porta do quarto. Depois, retomando suas devotas preces, acrescentava, sem dúvida, o pedido de que, do alto dos Céus, Maria Santíssima o protegesse de modo especial, pois Ela é a mais excelsa das mães e a atenderia com solicitude.
A despedida para essa viagem não fora diferente das anteriores, ao menos na aparência. Não havia nenhum indício de que o maternal coração de Dª Lucilia estivesse sobressaltado, já naquela ocasião, pelo pressentimento de lhe estarem ocultando algo. Pelo contrário, nas primeiras horas após a partida, ela aparentava estar despreocupada e tranquila.
Contudo, como nos revelará a sequência dos acontecimentos, todas as filiais precauções de Dr. Plinio para amenizar a separação não a iludiram quanto ao verdadeiro destino dele.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias.)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

No pórtico da ancianidade

Em 22 de abril de 1946, Dª Lucilia completava 70 anos...
Na vida humana, 70 anos constituem um marco. Aí aparecem, como que cristalizadas, todas aquelas preferências e modos de ser que nortearam o desenrolar de uma existência. Naqueles que procuraram trilhar a via da virtude reluz então, como nunca — na fisionomia, nas palavras, nos gestos, nos atos, na ação de presença — a “soma das idades”: a inocência batismal, os sonhos da infância, as esperanças da adolescência, o vigor da juventude, a força e a estabilidade da idade madura, o magnífico reluzimento de uma velhice florida a que agora se acresceriam os reflexos de prata da ancianidade, tudo temperado pelos sofrimentos que ao longo da vida lhe lapidaram a alma, transformando-a num como que diamante aos olhos de Deus.
Nessa lapidação — é o caso de lembrar — não faltou nem mesmo aquele tipo de sofrimento que sua antiga situação nunca faria prever: as dificuldades financeiras, após a morte de Dª Gabriela. No entanto, se Dª Lucilia fosse uma pessoa bem-sucedida, talvez não alcançasse o patamar espiritual que atingiu. Por exemplo, se a família tivesse sido muito feliz nos negócios, e Dª Lucilia se encontrasse, portanto, na plenitude da fortuna, teria faltado algo em sua vida: o valor da posição que herdara de seus maiores, sustentada com grande categoria em meio às dificuldades.
De outro lado, requintara-se em Dª Lucilia aquela afetividade brasileira, sempre educada, distinta e nobre, qualquer que fosse a situação. Temperada por um certo ar de gravidade senhorial, próprio de dama paulista dos antigos tempos, que transparecia em todas as suas atitudes, mesmo quando andava dentro de casa, indo a uma sala, por exemplo, para apanhar uma costurinha. Este aspecto de sua personalidade formava um oposto harmônico com a meiguice, que em sua vida ocupava lugar preeminente.
Usava uma cadeira de balanço trazida dos Estados Unidos por um tio dela. Quando se levantava, preferia não ser ajudada. Fazia-o por si mesma, como um monumento. Andava com seu passo característico, em geral ágil e discreto, por vezes vagaroso e solene, e sumia nos aposentos dela...
Insigne piedade
Durante aqueles 70 anos nunca esmoreceu em Dª Lucilia o amor a Nossa Senhora, cuja onipotente intercessão junto ao Sagrado Coração de Jesus ela tão bem compreendia. Desde sua meninice, Maria Santíssima velava por ela, pois sua mãe, Dª Gabriela, lhe escolhera para madrinha a Virgem da Penha.
Desde aqueles tempos conservava em seu quarto, no mesmo oratório da imagem do Sagrado Coração de Jesus, outra menor, de Nossa Senhora das Graças. No lado esquerdo da cama, suspenso à parede, mais um oratório de madeira abriga a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Como era de esperar em se tratando de pessoa tão devota da Santíssima Virgem, tinha lugar de destaque em sua piedade — já na mais remota mocidade — a recitação do Santo Rosário. Sua devoção mariana reluzia sobretudo durante o mês de maio, ocasião em que floria algumas imagens de Nossa Senhora que havia na casa.
Dona Lucilia pertencia à Associação das Mães Cristãs e participou de alguns retiros — bem podemos imaginar com que recolhimento, seriedade e amor — promovidos pela entidade. Outro testemunho de suas constantes orações nos é dado pelos muitos devocionários que, com cuidado, guardava numa gaveta em seu quarto para tê-los à mão quando desejasse.
O avançar dos anos não lhe fizera diminuir o desejo de comparecer às solenidades religiosas, onde pudesse satisfazer os melhores anelos de sua insigne piedade, apesar do esforço que o peso de seus sofridos 70 anos lhe exigiam.
Numa carta escrita a Dr. Plinio, em 26 de junho de 1946, terminava dizendo:
Fui agora à noite à novena do Sagrado Coração de Jesus na Igreja de Santa Cecília, e desejo repetir amanhã, e, se Deus me ajudar, como todos os anos, irei à missa, comungarei, e acompanharei a procissão no dia vinte oito, depois de amanhã à tarde. Acompanhei também parte da de Corpus Christi, que esteve concorridíssima, e no largo da Sé, recebemos a bênção. Quando de volta, exausta, meti-me na cama até o dia seguinte.
Bem, muito querido, cansada e com sono, despeço-me, enviando-te com minhas mais afetuosas bênçãos, muitos beijos abraços e saudades.
De tua mamãe extremosa
 Lucilia
Quando Dª Lucilia lhe enviou esta missiva, Dr. Plinio se encontrava em São Sebastião, no litoral paulista, para tratar da execução testamentária de seu amigo José Gustavo, falecido pouco tempo antes.
Transcrito, com adaptações, da obra Dona Lucilia, de João S. Clá Dias

domingo, 9 de setembro de 2012

Discernimentos maternos

Os primeiros anos da década de 60 reservavam outros sofrimentos a Dª Lucilia. Com efeito, levado por seus deveres de apostolado, Dr. Plinio foi convidado a pronunciar uma conferência no Uruguai e para lá se dirigiu em maio de 1962. Embora o objetivo dele fosse apenas esse, e ao se despedir deixasse transparecer segurança e tranquilidade, Dª Lucilia ficou apreensiva, receando que outros fatores — a situação política no Brasil de então inspirava preocupações — houvessem determinado esse deslocamento de seu filho para a nação vizinha.
Imersa nessas cogitações, mas sem externar seus temores, Dª Lucilia o viu partir. Deixava a Dr. Plinio a inteira liberdade de proceder como melhor lhe aprouvesse, pois, segundo seu acertado juízo, tudo o que ele fazia era bem feito. Confiante no auxílio divino, prosseguiu seu dia-a-dia como se os acontecimentos se desenrolassem na mais perfeita normalidade. Felizmente suas suspeitas, embora não fossem infundadas, não se confirmaram. Para seu contentamento, alguns dias mais tarde o “filhão” apareceu de surpresa em casa.
No momento em que ele entrou, estava Dª Lucilia no “Salão Azul”, recebendo alguns conhecidos que a tinham ido visitar. A serenidade de seu semblante denotava nada lhe estar perturbando o espírito. Bem se pode calcular a alegria que o regresso de Dr. Plinio lhe causou. Todavia, estando presentes ali outras pessoas, ela, como exímia e distinta anfitriã, continuou a lhes dispensar o melhor de sua atenção.
“Não, meu filho, eu não queria incomodar ninguém...”
Atos de abnegação, pequenos sofrimentos placidamente aceitos, inúmeros gestos de bondade e de paciência, foram alguns marcos de luz que continuaram a pontilhar a existência quotidiana de Dª Lucilia em seu apartamento da Rua Alagoas.
Certa noite, caiu do leito ao mudar de posição, pois seus movimentos estavam já bastante dificultados. Apoiando-se na cama, procurou em vão pôr-se de pé, e o ruído natural daquele esforço acordou a empregada, que dormia no quarto vizinho. Esta logo acorreu e, não sendo suficientemente forte para erguer Dª Lucilia, foi solicitar o auxílio de Dr. Plinio.
Ao entrar no quarto de sua mãe, ele a encontrou tentando ainda, com pertinácia, levantar-se sozinha, sem demonstrar qualquer aflição ou nervosismo por não o conseguir. Com todo o cuidado, ele a reergueu, acomodando-a no leito. Depois, num tom impregnado de afeto, perguntou-lhe:
— Mas, meu bem, por que a senhora não me chamou imediatamente?
Com toda a mansidão e naturalidade, ela respondeu:
— Não, meu filho, eu não queria incomodar ninguém...
Equilíbrio entre justiça e misericórdia
Esse admirável desapego que Dª Lucilia tinha de si própria lhe conferia o perfeito equilíbrio entre duas virtudes harmonicamente opostas, como eram seu senso de justiça e sua misericórdia. A idade não fez senão acrisolar essas virtudes. Por exemplo, sempre que em sua presença se apontava, por qualquer motivo, os defeitos de alguém, ela logo chamava a si a defesa da vítima. Não para proteger lados censuráveis, mas para impedir um juízo parcial sobre a pessoa em causa, pois devia-se considerar também os aspectos bons que realmente tivesse.
Dessa forma comentava ela a respeito de um conhecido, alvo das invectivas de espíritos menos conciliadores:
— É verdade... Mas, note que, por exemplo, ele é sempre franco. Muitos, que não possuem o defeito dele, entretanto são falsos. Esta franqueza tem seu valor. Ao se lhe apontarem os defeitos, é preciso recordar tal qualidade.
Virtude da vigilância
Quando Deus quer implantar uma obra, nunca falta com os meios, tanto sobrenaturais como naturais, para a sua realização. Assim, por exemplo, ao suscitar uma nova ordem religiosa. A fim de que ela se desenvolva e floresça, Deus favorece seu fundador com todos os dons e carismas necessários que lhe possibilitem cumprir integralmente a vocação à qual foi chamado. O mesmo se dá com a condição materna, magnífico símbolo da Providência de Deus. Não raras vezes costumam ser as mães assistidas pelo Espírito Santo com um certo discernimento dos espíritos, não só com vistas a educar os filhos, mas também a guiá-los pelo caminho do bem ao longo da vida.
Esse dom — que em Dª Lucilia se manifestou repetidamente sob a forma de alertas a seu filho para os perigos desta ou daquela situação — foi de novo posto em realce por um pequeno episódio. Estando ela a conversar em sua casa com alguns parentes e conhecidos, fez-se referência à então recente nomeação de certo personagem para um cargo de importância. Teceram-se alguns comentários sobre o caráter dele e, como Dª Lucilia ainda não o conhecia, mostraram-lhe uma fotografia publicada naqueles dias pela imprensa. Tinha ele relação com as atividades desenvolvidas por Dr. Plinio, e por isso ela se interessou mais especialmente pelo assunto. Tomou o jornal nas mãos, observou em silêncio por alguns instantes aquela fisionomia, e comentou com tristeza:
— Ele não é boa pessoa, não...
Essas palavras, naqueles lábios repletos de benquerença, surpreenderam os presentes, mas, como das vezes anteriores, em breve os fatos viriam a lhe dar razão.

Não deixa de ser interessante também outro episódio desta natureza, ocorrido na mesma época.
 Um sonho premonitório
Certo dia Dª Lucilia contou a Dr. Plinio um sonho que a deixara um tanto intrigada. Seria talvez mais uma expressão de seu incomum discernimento das pessoas e das situações atinentes a seu filho.
Nesse sonho, ela se via no “1º Andar”. Em determinado momento, alguém tocou a campainha da porta, e como não havia quem atendesse, foi ela mesma abrir. Para sua surpresa, estava ali seu falecido pai, Dr. Antônio, que vinha visitá-la.
Exultante de alegria, ela o acompanhou pelas diversas dependências do apartamento, explicando-lhe a origem dos móveis, quem havia feito a decoração, e um sem-número de outros detalhes. Dr. Antônio, com a mesma afeição que sempre devotara à filha, comentava tudo, dando sua aprovação. Por fim, chegaram ao fundo do corredor, onde estava localizado o quarto dela. Abriram a porta e, atônitos, depararam com um dos amigos de Dr. Plinio, deitado de través na cama, numa atitude vulgar e com um sorriso malévolo estampado no rosto.
Ante essa desagradável cena, Dr. Antônio censurou paternalmente a filha, dizendo:
 — Em sua casa está tudo muito bem. Mas que você admita aqui tipinhos destes, eu não posso aprovar.
Nesse instante ela acordou. Ora, a mencionada pessoa daria grandes dissabores a Dr. Plinio, muitos anos após a morte de Dª Lucilia, o que na época em que se deu o sonho narrado ninguém poderia sequer suspeitar.
Esse discernimento que Dª Lucilia tinha do mal — animado em boa medida por seu grande afeto materno, mas sobretudo por sua retidão de alma — dificilmente era desmentido pela realidade, e nunca a abandonou até o fim de sua vida.  
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João Clá Dias)

domingo, 2 de setembro de 2012

As perspectivas de um completo isolamento

                                                          As despedidas no elevador
A fim de, no entardecer da existência de Dª Lucilia, amenizar-lhe em algo a paciente solidão, seu filho todos os dias a entretinha com uns 40 minutos de conversa após o jantar. Ao perspicaz e diligente olhar de Dr. Plinio não era difícil discernir as provações que afligiam a alma de sua mãe, cujo involuntário isolamento era, por certo, muito penoso. Para animá-la, costumava lhe repetir, num tom repassado de carinho:
— Mãezinha! força, energia, ênfase, resolução!
A tais palavras, Dª Lucilia respondia com um ligeiro sorriso de contentamento, sem nada dizer. A certa altura dessa prosinha, os inadiáveis deveres de apostolado de Dr. Plinio vinham pôr termo ao abençoado convívio. Embora com o coração partido por ter de deixar sua mãe apenas em companhia da boa Olga (e mais tarde na da Mirene, que a esta sucedeu), ele se levantava e, depois de se despedir dela com muito afeto, dirigia-se para o elevador. Não raras vezes Dª Lucilia o seguia até lá, querendo desfrutar até o último instante a doce companhia de seu filho. Ocasionalmente uma tocante cena podia ser observada no momento em que Dr. Plinio abria a porta do elevador. Com sua voz meiga e afável, esperançosa de ainda retê-lo, Dª Lucilia lhe dizia sorridente:
— Filhão, você não tem pena de deixar sua mãe tão sozinha?
Que esforço Dr. Plinio devia fazer sobre si mesmo, para resistir a tão suave apelo! Contudo, estavam à sua espera para assistir às reuniões feitas por ele todas as noites, aqueles que a Providência lhe destinara como seguidores na Contra-Revolução. Aliás, estes talvez ignorassem que as graças ali recebidas custavam o sacrifício da penosa solidão de Dª Lucilia, ainda mais penosa depois da morte de Dr. João Paulo.
Como explicar a Dª Lucilia tudo isso? Afinal, premido pelo dever, Dr. Plinio osculava a fronte de sua mãe e respondia:
— Meu bem, lamento muito, mas agora é minha obrigação ir ter com os meus companheiros de apostolado. Depois de a oscular uma vez mais, entrava no elevador e partia.
Em outras ocasiões essas despedidas davam lugar a uma encantadora manifestação de solicitude materna. Dª Lucilia procurava advertir seu filho — homem de mais de cinqüenta anos — como o fazia nos idos tempos em que ele ainda era jovem...
Segundo os antigos padrões, o ascensor subia e descia num ritmo lento, demorando a atingir o andar a que fora chamado. Ora, esta lentidão contrariava o resoluto modo de ser de Dr. Plinio — sempre disposto a agir calma mas prontamente — em especial nos momentos em que urgia atender a seus compromissos. Decidido a ganhar tempo, ele lhe dizia:
— Mãezinha, vou pela escada, pois estou com muita pressa!
E sem mais demora descia, enquanto ouvia ecoar o suave mas peremptório timbre de voz materno:
— Filhão, cuidado! Não corra, senão você cai! Era como se uma vigilante e carinhosa mão procurasse diminuir-lhe a cadência dos passos.
A possibilidade de ficar isolada
Uma das maiores provações de Dª Lucilia, nessa avançada etapa de sua vida, foi o súbito agravamento de suas condições auditivas, ao mesmo tempo em que um aumento de catarata lhe diminuía um tanto a visão.
A perspectiva futura era confrangedora, pois, a progredirem mais essas deficiências, Dª Lucilia perderia quase inteiramente a possibilidade de se comunicar com o mundo exterior. Portanto, de ter com seu filho aquele elevado convívio tão alentador para ela. Constituía-lhe igualmente não pequeno sofrimento, dado seu modo de ser tão afeito a se interessar por seus semelhantes, o não poder lhes prodigalizar caridoso auxílio.
Dª Lucilia e sua irmã Yayá
Diante dessa dolorosa possibilidade, ela não perdeu a serenidade nem a resignação. Sem embargo disso, transparecia em sua fisionomia uma tristeza mais acentuada, que bem se pode notar numa fotografia tirada por ocasião de um de seus últimos aniversários, onde a vemos ao lado de sua irmã, Dona Yayá.
Se o Sagrado Coração de Jesus, nos seus insondáveis desígnios, permitia esse sofrimento para quem tão fielmente O adorava, concedia-lhe, de outro lado, em compensação, seu misericordioso amparo.
Assim, pouco tempo depois de se agravar a dificuldade de audição de Dª Lucilia, Dr. Plinio, ao ler um jornal, viu o anúncio de um aparelho que poderia suprir essa deficiência. E, como bom filho, não hesitou um instante em adquiri-lo, embora fosse elevado seu custo. Acertou com o vendedor uma ida deste ao “1º Andar” — numa hora que coincidisse com o término do almoço — a fim de proporcionar uma surpresa a Dª Lucilia. De fato o homem apareceu no momento combinado. Feito o teste, Dr. Plinio notou logo pela fisionomia dela a real eficácia do tal aparelho.
Ainda hoje é motivo de consolação para Dr. Plinio lembrar-se do contentamento de sua mãe, quando ela percebeu que poderia conversar normalmente. E, sobretudo, tornar a ouvir com nitidez o timbre da voz de seu querido filho ...
“Que belo olhar”
Foi ainda na tranqüilidade de sua alma que Dª Lucilia enfrentou a crescente dificuldade de visão. Quando o incômodo aumentou, seu filho a levou a um bom oculista. Tendo-a examinado, o médico disse baixinho a Dr. Plinio:
— Ela está com catarata muito adiantada nos dois olhos — dando a entender que poderia operá-la.
Após rápida e judiciosa reflexão, Dr. Plinio optou por não submeter sua mãe àquela cirurgia, que poderia impressioná-la muito e infligir-lhe um sofrimento desnecessário, estando ela já tão idosa. Algum tempo depois, cessou o progresso da enfermidade, permitindo a Dª Lucilia conservar, até o fim de seus dias, suficiente clareza de visão para levar uma vida normal, em meio às condições de sua veneranda idade. Esses consoladores auxílios da Providência muito contribuíram para atenuar aquela sombra de tristeza, o que bem podemos notar em fotografias posteriores.
Curiosa foi a reação de um oculista, em outra consulta, ao assestar os aparelhos a fim de examinar os olhos de Dª Lucilia. O médico, que além de exímio profissional tinha alma de artista, antes de proceder ao exame não conteve uma exclamação:
— Que belo olhar!
Foi para ele inesquecível o privilégio de contemplar aqueles olhos castanho-escuros. De fato, nestes se encontravam serenidade, afeto, veracidade, em síntese, uma garantia de proteção própria a tocar profundamente as almas que sabiam admirá-los.
(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)