sábado, 2 de novembro de 2013

Em tudo conforme à Igreja

O convívio com Dona Lucilia oferecia a Dr. Plinio a oportunidade de se aprofundar no conhecimento da psicologia humana, bem como na percepção das virtudes cristãs vividas com compenetração, porém com facilidade, como se fossem uma segunda natureza. Para ele, sua mãe foi um modelo de amor ao Coração de Jesus, à Igreja e ao Papa.
Como a maioria dos filhos, desde muito pequeno senti o carinho e o afeto de mamãe para comigo, assim como percebia, a la criança, a elevação de alma com que ela os dispensava à minha irmã e a mim. Também ainda menino, através dos diversos movimentos de encanto que a pessoa dela despertava naturalmente no meu coração filial, aprendi as primeiras noções de psicologia humana, compreendendo como as qualidades morais se entrelaçavam no espírito dela, constituindo o todo harmonioso e belo de uma alma virtuosa.
Lição permanente de lealdade a Deus
Não hesito em dizer, pois, que a partir dos meus remotos tempos de menino, e estendendo-se ao longo da vida de Dona Lucilia esta foi para mim uma lição permanente de lealdade em relação a Deus e aos seus Mandamentos.
Nesse sentido, já tive oportunidade de salientar o modo como mamãe considerava o dever de frente, com seriedade e ânimo resoluto; como demonstrava uma fortaleza invulgar diante do sacrifício que se lhe apresentava no caminho, enfrentando-o sem nada perder de sua suavidade e das outras virtudes que a caracterizavam. Daí ela ter sido, de certo modo, a matriz das boas disposições de alma que eu porventura cultivaria em mim mesmo. Vivendo uma existência comum de dona-de-casa, mamãe foi de alguma maneira a minha “memória”, onde eu encontrava tudo aquilo a partir do qual talhei minha personalidade de católico, apostólico, romano. E eu apreciava esta joia inicial, na sua beleza primeva, incrustada no espírito dela.
De fato, não fosse o reluzimento contínuo desses fundamentos de virtude nela enraigados, eu me teria esquecido daqueles movimentos primeiros de admiração das qualidades dela, que tanto contribuíram para minha própria formação. E esse rebrilhar durou até a sua extrema ancianidade.
Suprema firmeza
Um episódio característico. Algum tempo antes de mamãe morrer, percebi que ela rasgava papéis e se desfazia de coisas que tinha guardado a vida inteira. Ao fazê-lo, notava-se nela uma certa tristeza e desilusão. Porém, eu tinha tomado como regra não desgostá-la em nada, e o que ela quisesse, ela faria. Mesmo sabendo tratarem-se de escritos meus para ela, não fiz oposição às destruições.
Pouco tempo depois percebi que ela pressentia a sua morte, e decidira destruir, ela mesma, o que receava não seria conservado pelos outros. Quer dizer, antes das suas exéquias, mamãe preparou os funerais das recordações dela...
Permitam-me salientar a firmeza de alma e a lealdade de vistas que tal atitude representa. Ela terá dito a si mesma: “Encontro-me nessa situação, e a conduta razoável a ser adotada, de frente, é essa”, e caminhou para a morte, acompanhada da idéia de colocar em ordem seus papéis e seus pertences, a fim de não dar trabalho aos outros! Tudo isso, quero crer, está de acordo com o equilíbrio de virtudes numa alma católica.
Mais ela mesma quando rezava
Aliás, cumpre dizê-lo, por mais que eu a analisasse em todas as posições e atitudes, nunca a achava ser tão ela mesma do que quando recitava suas orações. Sobretudo as que ela fazia junto às imagens do Sagrado Coração de Jesus, fosse a do oratório que tinha em seu quarto, fosse a do salão de nossa residência.
Nessas horas, tocava-me a impressão de que as qualidades de mamãe cresciam, e que se estabelecia — não me refiro a visões, revelações nem a quaisquer outras manifestações de caráter extraordinário — uma espécie de vínculo entre o Sagrado Coração de Jesus e ela, uma forma de relacionamento por onde se percebia que Nosso Senhor comunicava algo de sua bondade infinita à alma dela. Como fruto daquela entranhada devoção de Dona Lucilia a Ele, algo das inefáveis qualidades do Coração Sagrado de Jesus era-lhe transmitido, cumulavam-na, e determinava uma particular consonância entre ela e os princípios da fé católica.
Sob as vistas de um “inquisidor” afetuoso e inflexível
Nesse sentido, devo acrescentar outra consideração. Apesar de toda a minha benquerença para com ela, à medida que ficava mais velho e pelo natural desenvolvimento do meu espírito, compreendia perfeitamente que mamãe podia significar uma alta coisa na minha vida, porém não era a norma que ditava o meu existir. O que pautava minha existência era a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, como passei a conhecê-la e a amá-la, à luz dos ensinamentos dos padres jesuítas em cujo colégio eu estudava. Estes me fizeram compreender a importância do papado, a devoção ao Vigário de Cristo, a Nossa Senhora, à Sagrada Eucaristia, etc., bem como chamavam nossa atenção para as tramas e os ataques que os adversários da Igreja urdiam contra ela.
Eu via, portanto, dois valores distintos. Primeiro, a Igreja, fonte da verdade; segundo, a Revolução, cuja ignomínia essencial era seu ódio mortal à Igreja. Por outro lado, eu considerava Dona Lucilia. E fiz essa comparação: “Aqui está minha mãe; aqui, a Santa Igreja como a conheço hoje, como me é apresentada pelos meus professores jesuítas. Em última análise, quem vale mais: a Igreja ou mamãe?”
A resposta veio incontinenti ao meu espírito: “As coisas não se dissociam. Tudo quanto há de bom em mamãe, ela recebeu da Igreja. Esta é o supremo bem, e mamãe só será realmente boa, se em tudo estiver de acordo com ela.
Agora as qualidades de Dona Lucilia estão sujeitas ao crivo da minha análise como católico, e devo me perguntar se tudo nela é conforme à Igreja. Pois se algo não o for, eu prefiro a Igreja, fundada por Deus, a ela, uma criatura humana falível como qualquer outra. Portanto, cuidado.”
E, por assim dizer, reexaminei-a, ponto por ponto. Fazia-lhe perguntas de cunho doutrinário, para ver bem como ela pensava. Fui seu “inquisidor”, afetuoso, respeitoso, meticuloso, inflexível. Ela passou no exame com nota 100...
Lucilia Correa de Oliveira - Extraído de conferências em 24/4/1982 e 12/8/1988

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A razão de tanta bem-querença…


Permanentemente meditativa e com o espírito posto na contemplação do Sagrado Coração de Jesus, Dona Lucilia irradiava em torno de si uma discreta doçura, característica à sua personalidade.
No contato contínuo, de um filho com sua mãe, eu sentia em Dona Lucilia algo da doçura de espírito própria a uma alma elevada em altas cogitações.
Não era apenas a doçura de uma pessoa com bom gênio, bom humor, que trata as pessoas bem. Era também isso, mas penetrado por um raio de luz que tornava a bondade dela à maneira da bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Eu percebia perfeitamente que isso era dado por Ele a ela. Era como se tirasse um raio do Sol e com ele dardejasse uma alma; a alma não ficaria com todos os raios do Sol, mas ela ficava cheia daquele raio que ela recebeu.
Assim, mamãe não tinha, nem de longe, todas as virtudes de Nosso Senhor Jesus Cristo — a não ser no grau que um bom católico praticante possa ter —, mas em torno dela havia uma presença de elevação, de tristeza, de bondade, de perdão sem limite, de soledade que a assemelhava a Ele.
Uma soledade cheia de presença
Existia em torno dela uma soledade que não era o vazio; ela não produzia em torno de si o vácuo. A soledade de Dona Lucilia era saturada, impregnada pela irradiação de sua bondade.
Por exemplo, ao vê-la sozinha na cadeira de rodas, na sala de jantar, sentia-se que, embora estivesse fisicamente só, ela enchia a sala de jantar e a casa inteira. Aliás, até hoje a casa de Dona Lucilia tem algo da presença dela.
Confirmação tangível de como era Nosso Senhor Jesus Cristo
Conhecendo-a, eu tinha uma espécie de confirmação tangível de como era Nosso Senhor Jesus Cristo. Vendo que Ele era infinitamente maior, porém semelhante, eu tinha uma espécie de confirmação na Fé. Quer dizer, se à força de rezar ao Sagrado Coração de Jesus mamãe ficou com algo disso, Ele é ainda muito mais. Olhando para as imagens d’Ele, mais de uma vez eu me lembrava dela; e olhando para ela, mais de uma vez eu me lembrava d’Ele.
A razão principal de minha benquerença por ela — eu a queria imensissimamente bem — era por ver nela uma discípula de Nosso Senhor Jesus Cristo. No fundo, era um querer bem a Ele, nela.
É preciso compreender o seguinte: eu nunca notei nela o menor desejo de imitá-Lo fisicamente, o que, aliás, seria inteiramente insuportável, intolerável! Minha amizade, meu afeto por ela se partiriam em estilhaços se eu notasse uma coisa assim. Não era isso.
Era propriamente o que a Doutrina Católica nos ensina de uma alma boa, reta e muito sobrenatural, que recebia esse embebimento d’Ele.
Grande sentimento de apoio
Isso me animou a vida inteira, deu-me alegria nos maiores reveses e aborrecimentos. Era um lado de minha vida, por assim dizer, um jardim de minha vida, em que nunca penetrou o oposto, dando-me um sentimento de apoio muito grande.  
 Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 15/4/1989

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Um sinal do Sagrado Coração de Jesus?

















A um tão bondoso coração, não deixaria a Providência
Divina sem algum consolo. Durante suas aflições foi 
Dª Lucilia objeto de uma manifestação da celestial 
benquerença do Sagrado Coração de Jesus.


O fato se deu num momento em que a sua angústia, devido à situação de seu filho  Plinio*, atingiu um clímax. Enquanto rezava e colocava uma rosa num vasinho aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus, na sala de visitas, Dona Lucilia implorou ao Divino Salvador que livrasse seu filho do perigo, e por outro lado desse a ela um sinal de ter sido atendida. Formulada a súplica, desceu ao jardim, onde, enquanto caminhava um pouco, certamente prosseguia piedosamente as orações.

De repente ouviu o troar de canhões ao longe, o que a deixou muito alarmada. Mas daí a pouco chegou a notícia da renúncia do presidente Washington Luís, no Rio de Janeiro. Os tiros de canhão festejavam a vitória do levante militar.

Sua primeira reação ao ouvir a notícia — cuja consequência imediata era o fim das hostilidades e a reabertura do caminho de volta para Plinio e seus companheiros — consistiu em ir aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus para agradecer-Lhe este efeito dos complexos acontecimentos, que assim começavam a desenvolver-se no País. Qual não foi sua surpresa quando, ao acercar-se da referida imagem, encontrou desfolhadas no chão as pétalas da rosa pouco antes ali colocada. Até o fim da vida ela contaria esse expressivo episódio, vibrante de gratidão para com seu Divino Protetor.

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons.João S. Clá Dias)
* Ver explicação da situação no Brasil na época acessando o blog http://luciliacorreadeoliveira.blogspot.com.br/





sábado, 9 de março de 2013

Bondade do Sagrado Coração de Jesus


"A bondade de Dona Lucilia ajudou­-me muito a amar a Deus.

Quando eu olhava para as imagens do Coração de Jesus, pensava: “Ele é infinitamente melhor do que ela; como será então Sua bondade?”

Era um ponto de partida para muitas meditações. Sobretudo quando eu meditava no Sagrado Coração transpassado por Longinos, o que me causava uma pena enorme:

“Então, depois de Ele ter feito pelos homens tudo quanto fez, levar no Coração uma lancetada... Acabou dando até depois de morto!”

Depois de morto, é verdade, mas presente de algum modo. Porque Ele curou — por aquela mistura de sangue com água que saiu do Sagrado Corpo d’Ele — o tal Longinos, que era meio cego.

Essa bondade de curar um indivíduo qualquer na hora em que este mete uma lança no Coração d’Ele, me comovia enormemente. E eu pensava: “Se o Sagrado Coração de Jesus é assim, teve tal bondade nessa hora, a bondade d’Ele é incalculável, e inclusive tem misericórdia de mim. Eu, portanto, apesar de meus defeitos, devo caminhar com confiança até Ele.”

Antes de encerrar essas considerações, julgo oportuno lembrar este raciocínio:

Se realmente eu sou bom e tenho pena dos que sofrem, devo sobretudo condoer­-me dos que sofrem injustiça. Portanto, a minha bondade leva à combatividade. Porque, vendo alguém sofrendo injustiça, preciso entrar na luta para fazê-­la cessar. Assim, não se é bom quando não se é também combativo.

Diz a Ladainha do Sagrado Coração de Jesus: “Coração de Jesus, paciente e de muita misericórdia, tende pena de mim.” Em esfera individual, uma pessoa pode pedir: “Coração de Jesus, paciente e de muita misericórdia, fazei de mim um leão na defesa de vossa Igreja tão perseguida.” 

Plinio Correa de Oliveira Extraído de conferência de 20/9/1994

sábado, 19 de janeiro de 2013

Suavizante bondade

Entre os edificantes aspectos da pessoa de sua mãe, Dr. Plinio apreciava a elevada clave de espírito em que ela se situava e da qual provinham seu afeto e sua benevolência, tão atraentes quanto consoladores. Na verdade, Dona Lucilia procurava, habitualmente, considerar todas as coisas em função do parâmetro absoluto que é Deus.
Minhas observações em relação a Dona Lucilia começaram muito cedo, quando eu, menino de 2 ou 3 anos, acordava durante a noite e saía do meu berço — colocado ao lado da cama dela — para ir me sentar sobre o peito de mamãe. Abria seus olhos com a mão e começava a analisá-la.
Líquidos de sabores semelhantes em taças distintas
Creio que, instintivamente, conforme os rudimentares anseios de uma criança nessa idade, eu percebia através do modo como ela então me tratava, a expressão de uma bondade superior, arquetípica, cuja manifestação me apareceria mais tarde, quando me fosse dado compreender a misericórdia do Sagrado Coração de Jesus para conosco. Essa afinidade entre a bondade e a compaixão infinitas d’Ele com as de mamãe sempre me chamou a atenção, e também já a salientei em diversas oportunidades. Aos meus olhos de menino, essa consonância poderia ser comparada a duas taças a mim oferecidas, com líquidos cujos sabores me pareceriam análogos. Eu tomaria de uma e me deliciaria com seu conteúdo; pouco depois, beberia da outra, e igualmente me sentiria agradado, sem chegar à conclusão de que era o mesmo líquido.
Claro está, devem-se guardar as proporções entre o finito e o infinito. Assim, ao conhecer o Sagrado Coração de Jesus, discerni n’Ele o perfeitíssimo a perder de vista, sem nenhuma ressalva ou restrição, o supra-sumo do que se podia conceber em matéria de misericórdia e bondade. Entretanto, afim com a bondade de mamãe, embora incomparavelmente menor, como se Ele vivesse nela. De sorte que o maravilhamento causado em mim por Dona Lucilia, de modo mais circunscrito, era do mesmo gênero que o superior encanto produzido pelo Coração de Jesus na minha alma. Aquele era derivação deste. E quando, anos mais tarde, cheguei à conclusão de que eram coisas afins, não tomei essa definição como uma conquista nem como uma surpresa, e sim como uma constatação natural do que eu sempre sentira. Eram taças com líquidos parecidos.
“Em qualquer parte do mundo ela me atrairia!”
Parece-me interessante notar que as descrições feitas por pessoas que conheceram mamãe, correspondem minuciosamente à essa impressão que ela me causava. E corroboram em mim a certeza de que, em qualquer parte do mundo onde nos encontrássemos, eu seria atraído por Dona Lucilia.
Diversas vezes, durante o nosso longo convívio, me pus este problema: qual seria o teor deste relacionamento, caso eu não fosse filho dela, mas sobrinho? E concluía que só não seria idêntico pela razão de não estarmos continuamente juntos, sob o mesmo teto. Quanto ao mais, não haveria diferença.
E se ela fosse uma pessoa que eu conhecesse noutro ambiente da sociedade paulista? A mesma resposta. Em qualquer lugar, eu teria sido conquistado pelo olhar dela, pelo seu modo de ser, e teríamos estabelecido uma amizade inabalável. E me agradaria pensar que tais sentimentos fossem recíprocos.
Daí o meu trato com mamãe se traduzir em manifestações as mais carinhosas possíveis. Chamá-la de “meu bem” a todo momento era o mínimo que eu lhe dizia, de tal maneira nossa união era completa, natural, constante. Mais que união, era uma identidade.
Reflexo da clemência de Nossa Senhora
Essa relação baseada no afeto e na bondade teve um importante papel na minha compreensão acerca da insondável misericórdia de Nossa Senhora para com os homens, especialmente para com os pecadores. Quando eu próprio me senti objeto dessa clemência da Mãe de Deus, foi como se Ela me dissesse: “Eu perdôo tudo, e por mais que você cambaleie e se apresente a mim nesse estado de penúria espiritual, terei pena e o perdoarei”. O sentir essa disposição maternal determinava em mim a idéia da proteção e do afago desinteressados de Nossa Senhora para comigo: a misericórdia d’Ela sobrepuja os últimos limites de minha miséria, cobre-os com sorriso, com ternura, com sobras de complacência, só porque eu sou o Plinio...
Ora, em grau menor, eu sentia análogas disposições de mamãe em relação a mim. Portanto, sem eu saber, ela preparava meu espírito para compreender a extraordinária misericórdia de Nossa Senhora. Quiçá eu não a tivesse entendido como a entendi, não fosse esse contato prévio com o afeto de Dona Lucilia.
Ungido pelo perfume da bondade
A par dessa profunda analogia com a ternura de Maria Santíssima, eu apreciava em Dona Lucilia a elevada clave de espírito em que ela se situava e a partir da qual nos dispensava suas manifestações de afeto e benevolência. Na verdade, mamãe procurava habitualmente considerar as coisas em função de algo mais alto, em função do parâmetro absoluto que é Deus, assim como procurava atraí-las para essa elevação de alma.
De maneira que me sentia a mim mesmo sendo visto desde essa clave, e quando Dona Lucilia me agradava, era algo desse patamar que descia sobre mim, e como que me ungia. Por exemplo, quando ela me fazia o sinal da Cruz na testa, antes de ir dormir, eu percebia que alguma coisa daquela alta clave me recobria como um azeite, um bálsamo, e me fazia bem. Mas, no sentido próprio da palavra: era perfumado, suavizante, e penetrava em mim como o óleo penetra no papel.
Junto com essa elevação, a bondade invariável para comigo e para com os outros. Revestida de uma certa tristeza, igualmente comovedora, por constituir um ápice de conúbio com aquela clave elevada, na qual ela muitas vezes se sentia só: “Moro nesse patamar, que é o lugar do meu abandono. Convido-os para estarem comigo e desejo sua companhia. Porém, se não vierem, aqui permanecerei sozinha.”
Supérfluo dizer que essas qualidades de Dona Lucilia falavam imensamente à minha alma de filho...
Plinio Correa de Oliveira - Transcrito de conferência em 4/12/1985

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Dona Lucilia e o Natal

Dona Lucilia formou seus filhos de modo a terem o espírito sempre voltado para a transcendência. Tal orientação, eximiamente haurida por Dr. Plinio, influenciou a fundo o Natal da família
Dona  Lucilia  tinha  uma  grande  elevação  de  alma. Ela estava na direção  de uma família pequena — é verdade que morávamos na casa de minha  avó, a qual era então o ponto de reunião de uma família enorme — e levava uma vida muito recolhida, serena, tranquila, própria de uma senhora de casa. E habitualmente percebia-se, por seu olhar, seu timbre de voz, sua expressão de fisionomia, seus gestos, que tudo quanto ela pensava se relacionava com as mais altas considerações possíveis; e seu espírito contemplava as coisas de uma altura — embora ela não fosse uma senhora de  cultura filosófica — que eu diria metafísica, de uma grande elevação.
Espírito voltado para a transcendência
Isso se notava nas menores coisas; por exemplo, agradando-me enquanto eu brincava, como qualquer mãe faz com seu filho. Porém esse agrado era deduzido de tão altas considerações que eu, sem conhecê-las, percebia em sua fisionomia, seu modo de ser, provirem de muito alto e serem muito lógicas. Eu notava também que ela me conhecia até o fundo da alma, sabendo qual era o meu lado bom e o meu lado ruim; e me queria pelo lado bom e não me estimava pelo lado mau.
Dessa forma, todo agrado que ela me fazia era um incentivo para eu ser melhor, visando uma elevação altíssima. Isso me habituou desde pequeno a fazer a respeito das coisas exercícios de transcendência.
Quer dizer, a partir de uma espada, por exemplo, subir até a noção  abstrata de heroísmo na sua mais alta expressão, que é o heroísmo a serviço da Fé. E a Fé, por sua vez, comunicava ao meu espírito o conhecimento das verdades mais elevadas. 
Tais exercícios de transcendência marcavam também o Natal. Por exemplo, eu acreditava  muito  em  São Nicolau, mas percebia haver algo de meio mítico, lendário, de maneira  que  não  me  preocupava  em  imaginar como era sua figura. Dona Lucilia me ensinava que São Nicolau vinha do Céu e nos dava presentes. Mas sem que eu imaginasse  propriamente o santo ou algo semelhante, o universo se me apresentava relacionado com valores dos mais altos, mais transcendentes, que o espírito humano possa atingir. 
Rezando junto ao presépio

Isso transparecia  muito  na  noite  de Natal. Mamãe providenciava uma grande árvore de Natal, que ela mesma ornamentava com muitos enfeites. Estando tudo pronto, convidava minha irmã e eu, depois nossos primos-irmãos, — era um grande número de crianças —, e ainda outros parentes. Então descíamos do andar superior da casa, nos segurando pelas mãos e cantando canções natalinas, até junto àquela árvore que estava toda iluminada, ao pé  da qual havia um presépio com o Menino Jesus. Ela mandava que todos se  ajoelhassem e rezava uma oração na  qual se percebia toda a sua elevação  de alma, toda a sua suavidade e doçura. E eu compreendia haver ali uma alegria superior que impregnava tudo aquilo; era a alegria da bondade, da virtude, da retidão, da limpeza, da consciência tranquila.
Em ultima análise, era a alegria de Deus que se comunicava a nós pelos sorrisos do Menino Jesus. Até hoje tenho a imagem do Menino Jesus — de braços abertos e sorrindo,  como  em  geral  é  representado  —,  que mamãe colocava numa espécie  de bercinho feito por ela. 
Alegria de praticar a virtude
Tudo aquilo impregnava profundamente a noite de Natal com esta ideia que falta muito na educação de hoje: a vida do homem virtuoso é mais suportável, mais aceitável, do que a do não-virtuoso. A virtude traz alegria, é entusiasmável. É possível viver 70, 80 anos na virtude sem desanimar; isso mamãe, pelo seu modo de ser, deixava muito claro, e nos ensinava a degustar essa alegria sobrenatural que pairava em torno da noite de Natal.
Terminada a festa, meus primos iam para as suas casas, e eu para minha cama. Ela esperava eu estar dormindo para pôr aos meus pés o presente, que em geral era bastante grande e pesado. E eu acordava de madrugada na ânsia de vê-lo. Porém — fato por onde se nota a temperança de mamãe e como ela me educava —, eu compreendia que não devia acender o abajur, pois havia pessoas dormindo na casa. Seria uma desordem, não só porque as acordaria, mas em razão de um princípio superior: hora de dormir é hora de dormir, não se brinca; hora de brincar é hora de brincar, não se dorme.
Eu estava sentindo o peso daquele presente e imaginava o que seria; depois, sendo criança, caía no sono; certo tempo depois, isso se repetia.
Quando clareava o dia, eu despertava, saltava da cama e abria o pacote. Sentia um gáudio, uma satisfação, e ficava esperando mamãe acordar — ela dormia num quarto ao lado do meu — para ir agradecer-lhe. E o abraço, o beijo, a bênção dela, eram um  presente  maior  do  que  aquele  que ela acabara de me dar. Tudo isso constituía aquela espécie  de alegria meio angélica do  Natal, que somente conhece  quem a teve. 
Esta ideia da alegria como fruto do bem, como um modo de nos sustentar na prática da virtude,  foi complementar de uma outra  que ela ensinava muito: aguentar a vida dura, porque a vida é difícil, é uma luta, e temos que sofrer. Vendo como mamãe sofria, eu colhia lições para minha formação.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 27/12/1975