sábado, 19 de janeiro de 2013

Suavizante bondade

Entre os edificantes aspectos da pessoa de sua mãe, Dr. Plinio apreciava a elevada clave de espírito em que ela se situava e da qual provinham seu afeto e sua benevolência, tão atraentes quanto consoladores. Na verdade, Dona Lucilia procurava, habitualmente, considerar todas as coisas em função do parâmetro absoluto que é Deus.
Minhas observações em relação a Dona Lucilia começaram muito cedo, quando eu, menino de 2 ou 3 anos, acordava durante a noite e saía do meu berço — colocado ao lado da cama dela — para ir me sentar sobre o peito de mamãe. Abria seus olhos com a mão e começava a analisá-la.
Líquidos de sabores semelhantes em taças distintas
Creio que, instintivamente, conforme os rudimentares anseios de uma criança nessa idade, eu percebia através do modo como ela então me tratava, a expressão de uma bondade superior, arquetípica, cuja manifestação me apareceria mais tarde, quando me fosse dado compreender a misericórdia do Sagrado Coração de Jesus para conosco. Essa afinidade entre a bondade e a compaixão infinitas d’Ele com as de mamãe sempre me chamou a atenção, e também já a salientei em diversas oportunidades. Aos meus olhos de menino, essa consonância poderia ser comparada a duas taças a mim oferecidas, com líquidos cujos sabores me pareceriam análogos. Eu tomaria de uma e me deliciaria com seu conteúdo; pouco depois, beberia da outra, e igualmente me sentiria agradado, sem chegar à conclusão de que era o mesmo líquido.
Claro está, devem-se guardar as proporções entre o finito e o infinito. Assim, ao conhecer o Sagrado Coração de Jesus, discerni n’Ele o perfeitíssimo a perder de vista, sem nenhuma ressalva ou restrição, o supra-sumo do que se podia conceber em matéria de misericórdia e bondade. Entretanto, afim com a bondade de mamãe, embora incomparavelmente menor, como se Ele vivesse nela. De sorte que o maravilhamento causado em mim por Dona Lucilia, de modo mais circunscrito, era do mesmo gênero que o superior encanto produzido pelo Coração de Jesus na minha alma. Aquele era derivação deste. E quando, anos mais tarde, cheguei à conclusão de que eram coisas afins, não tomei essa definição como uma conquista nem como uma surpresa, e sim como uma constatação natural do que eu sempre sentira. Eram taças com líquidos parecidos.
“Em qualquer parte do mundo ela me atrairia!”
Parece-me interessante notar que as descrições feitas por pessoas que conheceram mamãe, correspondem minuciosamente à essa impressão que ela me causava. E corroboram em mim a certeza de que, em qualquer parte do mundo onde nos encontrássemos, eu seria atraído por Dona Lucilia.
Diversas vezes, durante o nosso longo convívio, me pus este problema: qual seria o teor deste relacionamento, caso eu não fosse filho dela, mas sobrinho? E concluía que só não seria idêntico pela razão de não estarmos continuamente juntos, sob o mesmo teto. Quanto ao mais, não haveria diferença.
E se ela fosse uma pessoa que eu conhecesse noutro ambiente da sociedade paulista? A mesma resposta. Em qualquer lugar, eu teria sido conquistado pelo olhar dela, pelo seu modo de ser, e teríamos estabelecido uma amizade inabalável. E me agradaria pensar que tais sentimentos fossem recíprocos.
Daí o meu trato com mamãe se traduzir em manifestações as mais carinhosas possíveis. Chamá-la de “meu bem” a todo momento era o mínimo que eu lhe dizia, de tal maneira nossa união era completa, natural, constante. Mais que união, era uma identidade.
Reflexo da clemência de Nossa Senhora
Essa relação baseada no afeto e na bondade teve um importante papel na minha compreensão acerca da insondável misericórdia de Nossa Senhora para com os homens, especialmente para com os pecadores. Quando eu próprio me senti objeto dessa clemência da Mãe de Deus, foi como se Ela me dissesse: “Eu perdôo tudo, e por mais que você cambaleie e se apresente a mim nesse estado de penúria espiritual, terei pena e o perdoarei”. O sentir essa disposição maternal determinava em mim a idéia da proteção e do afago desinteressados de Nossa Senhora para comigo: a misericórdia d’Ela sobrepuja os últimos limites de minha miséria, cobre-os com sorriso, com ternura, com sobras de complacência, só porque eu sou o Plinio...
Ora, em grau menor, eu sentia análogas disposições de mamãe em relação a mim. Portanto, sem eu saber, ela preparava meu espírito para compreender a extraordinária misericórdia de Nossa Senhora. Quiçá eu não a tivesse entendido como a entendi, não fosse esse contato prévio com o afeto de Dona Lucilia.
Ungido pelo perfume da bondade
A par dessa profunda analogia com a ternura de Maria Santíssima, eu apreciava em Dona Lucilia a elevada clave de espírito em que ela se situava e a partir da qual nos dispensava suas manifestações de afeto e benevolência. Na verdade, mamãe procurava habitualmente considerar as coisas em função de algo mais alto, em função do parâmetro absoluto que é Deus, assim como procurava atraí-las para essa elevação de alma.
De maneira que me sentia a mim mesmo sendo visto desde essa clave, e quando Dona Lucilia me agradava, era algo desse patamar que descia sobre mim, e como que me ungia. Por exemplo, quando ela me fazia o sinal da Cruz na testa, antes de ir dormir, eu percebia que alguma coisa daquela alta clave me recobria como um azeite, um bálsamo, e me fazia bem. Mas, no sentido próprio da palavra: era perfumado, suavizante, e penetrava em mim como o óleo penetra no papel.
Junto com essa elevação, a bondade invariável para comigo e para com os outros. Revestida de uma certa tristeza, igualmente comovedora, por constituir um ápice de conúbio com aquela clave elevada, na qual ela muitas vezes se sentia só: “Moro nesse patamar, que é o lugar do meu abandono. Convido-os para estarem comigo e desejo sua companhia. Porém, se não vierem, aqui permanecerei sozinha.”
Supérfluo dizer que essas qualidades de Dona Lucilia falavam imensamente à minha alma de filho...
Plinio Correa de Oliveira - Transcrito de conferência em 4/12/1985

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Dona Lucilia e o Natal

Dona Lucilia formou seus filhos de modo a terem o espírito sempre voltado para a transcendência. Tal orientação, eximiamente haurida por Dr. Plinio, influenciou a fundo o Natal da família
Dona  Lucilia  tinha  uma  grande  elevação  de  alma. Ela estava na direção  de uma família pequena — é verdade que morávamos na casa de minha  avó, a qual era então o ponto de reunião de uma família enorme — e levava uma vida muito recolhida, serena, tranquila, própria de uma senhora de casa. E habitualmente percebia-se, por seu olhar, seu timbre de voz, sua expressão de fisionomia, seus gestos, que tudo quanto ela pensava se relacionava com as mais altas considerações possíveis; e seu espírito contemplava as coisas de uma altura — embora ela não fosse uma senhora de  cultura filosófica — que eu diria metafísica, de uma grande elevação.
Espírito voltado para a transcendência
Isso se notava nas menores coisas; por exemplo, agradando-me enquanto eu brincava, como qualquer mãe faz com seu filho. Porém esse agrado era deduzido de tão altas considerações que eu, sem conhecê-las, percebia em sua fisionomia, seu modo de ser, provirem de muito alto e serem muito lógicas. Eu notava também que ela me conhecia até o fundo da alma, sabendo qual era o meu lado bom e o meu lado ruim; e me queria pelo lado bom e não me estimava pelo lado mau.
Dessa forma, todo agrado que ela me fazia era um incentivo para eu ser melhor, visando uma elevação altíssima. Isso me habituou desde pequeno a fazer a respeito das coisas exercícios de transcendência.
Quer dizer, a partir de uma espada, por exemplo, subir até a noção  abstrata de heroísmo na sua mais alta expressão, que é o heroísmo a serviço da Fé. E a Fé, por sua vez, comunicava ao meu espírito o conhecimento das verdades mais elevadas. 
Tais exercícios de transcendência marcavam também o Natal. Por exemplo, eu acreditava  muito  em  São Nicolau, mas percebia haver algo de meio mítico, lendário, de maneira  que  não  me  preocupava  em  imaginar como era sua figura. Dona Lucilia me ensinava que São Nicolau vinha do Céu e nos dava presentes. Mas sem que eu imaginasse  propriamente o santo ou algo semelhante, o universo se me apresentava relacionado com valores dos mais altos, mais transcendentes, que o espírito humano possa atingir. 
Rezando junto ao presépio

Isso transparecia  muito  na  noite  de Natal. Mamãe providenciava uma grande árvore de Natal, que ela mesma ornamentava com muitos enfeites. Estando tudo pronto, convidava minha irmã e eu, depois nossos primos-irmãos, — era um grande número de crianças —, e ainda outros parentes. Então descíamos do andar superior da casa, nos segurando pelas mãos e cantando canções natalinas, até junto àquela árvore que estava toda iluminada, ao pé  da qual havia um presépio com o Menino Jesus. Ela mandava que todos se  ajoelhassem e rezava uma oração na  qual se percebia toda a sua elevação  de alma, toda a sua suavidade e doçura. E eu compreendia haver ali uma alegria superior que impregnava tudo aquilo; era a alegria da bondade, da virtude, da retidão, da limpeza, da consciência tranquila.
Em ultima análise, era a alegria de Deus que se comunicava a nós pelos sorrisos do Menino Jesus. Até hoje tenho a imagem do Menino Jesus — de braços abertos e sorrindo,  como  em  geral  é  representado  —,  que mamãe colocava numa espécie  de bercinho feito por ela. 
Alegria de praticar a virtude
Tudo aquilo impregnava profundamente a noite de Natal com esta ideia que falta muito na educação de hoje: a vida do homem virtuoso é mais suportável, mais aceitável, do que a do não-virtuoso. A virtude traz alegria, é entusiasmável. É possível viver 70, 80 anos na virtude sem desanimar; isso mamãe, pelo seu modo de ser, deixava muito claro, e nos ensinava a degustar essa alegria sobrenatural que pairava em torno da noite de Natal.
Terminada a festa, meus primos iam para as suas casas, e eu para minha cama. Ela esperava eu estar dormindo para pôr aos meus pés o presente, que em geral era bastante grande e pesado. E eu acordava de madrugada na ânsia de vê-lo. Porém — fato por onde se nota a temperança de mamãe e como ela me educava —, eu compreendia que não devia acender o abajur, pois havia pessoas dormindo na casa. Seria uma desordem, não só porque as acordaria, mas em razão de um princípio superior: hora de dormir é hora de dormir, não se brinca; hora de brincar é hora de brincar, não se dorme.
Eu estava sentindo o peso daquele presente e imaginava o que seria; depois, sendo criança, caía no sono; certo tempo depois, isso se repetia.
Quando clareava o dia, eu despertava, saltava da cama e abria o pacote. Sentia um gáudio, uma satisfação, e ficava esperando mamãe acordar — ela dormia num quarto ao lado do meu — para ir agradecer-lhe. E o abraço, o beijo, a bênção dela, eram um  presente  maior  do  que  aquele  que ela acabara de me dar. Tudo isso constituía aquela espécie  de alegria meio angélica do  Natal, que somente conhece  quem a teve. 
Esta ideia da alegria como fruto do bem, como um modo de nos sustentar na prática da virtude,  foi complementar de uma outra  que ela ensinava muito: aguentar a vida dura, porque a vida é difícil, é uma luta, e temos que sofrer. Vendo como mamãe sofria, eu colhia lições para minha formação.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferência de 27/12/1975